"Gênero" não existe
Como um conceito duvidoso dominou o meio acadêmico
Por Steven Gussman1
A razão pela qual a “assistência médica para transgêneros” — desde a “transição social” (em que as pessoas à sua volta fingem que você é do sexo oposto, usando os pronomes errados) até a cirurgia — sempre esteve fadada ao fracasso é que a “disforia de gênero” não existe. E a “disforia de gênero” não existe porque “gênero” não existe. Vale a pena descascar essa cebola de confusão, uma camada por vez, para entender como chegamos a este ponto. Assim como grande parte do pós-modernismo, que atribui à linguagem um papel quase sobrenatural na causalidade mundana, a história do “transgenerismo” começa com a etimologia.
Enquanto “sexo” sempre denotou a realidade biologicamente imutável de homens e mulheres, e acabou se entendendo como definido por gametas (muitos espermatozoides pequenos e móveis versus poucos óvulos grandes e sedentários), “gênero” começou como um desdobramento gramatical. No início (por volta do século XIV), “gênero” era um termo categórico não específico que significava algo como “tipo”2, embora pareça ter rapidamente adquirido conotações de sexo. Todos sabemos que as línguas românicas (derivadas do latim) são fortemente marcadas pelo gênero gramatical, mas tendemos a ignorar que a língua inglesa também faz uso desse conceito. Originalmente, “gênero” era para as palavras o que “sexo” era para as pessoas. Por exemplo, enquanto “comediante” é tecnicamente masculino, uma comediante feminina seria chamada de “comedienne”. Enquanto “charuto” era masculino, “cigarro” era feminino. E, sim, enquanto “ele” se referia a pessoas do sexo masculino, “ela” se referia às do sexo feminino. Não havia divórcio entre sexo e gênero: o último significava simplesmente a linguagem usada para descrever o primeiro.
Foi somente no século XX, quando “sexo” passou a significar relação sexual, que “gênero” começou a ocupar seu lugar na descrição do sexo (masculino ou feminino) ao qual um indivíduo pertencia. Presumo que esse seja o sentido que a maioria dos falantes de inglês tinha da palavra até cerca de 2013 — como um sinônimo de sexo que talvez soasse menos grosseiro. Mas, a partir de meados do século, um significado mais técnico começou a tomar forma entre os mais inclinados academicamente: “gênero” era para a sociocultura o que “sexo” era para a biologia.
A essa altura, se o projeto ainda não estava em andamento, o cenário estava pronto para uma ideologia de gênero radical. Como em muitos de nossos problemas políticos, os pós-modernistas da década de 1960 passaram a usar seu considerável poder acadêmico para disfarçar em “gênero” todos os tipos de ideias marxistas culturais sob o pretexto de “erudição” ou mesmo “ciência” (o que parece ser o projeto do campo dos chamados Estudos de Gênero, que considera axiomático que “gênero” é uma “construção social” e, portanto, infinitamente maleável à redefinição). Usar o termo “gênero” neste trabalho serviu a um propósito específico.
Ao fundar departamentos acadêmicos inteiramente novos, isolados dos departamentos de Biologia, os estudiosos de Estudos de Gênero resolveram dois problemas relacionados. Primeiro, eles se protegeram da revisão por pares biológica. E, segundo, eles se protegeram da meritocracia de forma mais geral (poucos duvidariam de que os padrões para biólogos são muito mais elevados do que para estudiosos de Estudos de Gênero). O que serviu ainda mais à missão dos acadêmicos de Estudos de Gênero foi o provável aumento do viés de esquerda dos próprios biólogos, que são receptivos à ideia do dualismo gênero-sexo. (Até mesmo biólogos anti-woke como Heather Heying expressaram apoio a ela).
Por fim, o programa foi concluído com a mudança para reconectar “gênero” e “sexo”, mas agora tornando a última palavra sinônimo das novas ideias radicais que haviam sido incubadas dentro da primeira. Tudo isso foi prenunciado por Judith Butler (que fez a “transição social” para os pronomes neutros3 após a menopausa) quando escreveu em 2006: “Talvez essa construção chamada ‘sexo’ seja tão socialmente construída quanto o gênero; na verdade, talvez sempre tenha sido gênero, com a consequência de que a distinção entre sexo e gênero acaba não sendo nenhuma distinção”. Voltamos a usar esses termos de forma intercambiável, mas muitas pessoas agora veem toda essa questão de “masculino e feminino” como suspeita, se não “socialmente construída”. Isso é evidente na abertura de banheiros para ambos os sexos, na abertura de esportes femininos para homens que se identificam como mulheres e na introdução de todos os tipos de “gêneros” e “pronomes” extras.
Os acadêmicos de Estudos de Gênero de hoje seguem os passos de pessoas como o filósofo Michel Foucault, que via o conhecimento científico como uma espécie de mitologia moderna, e John Money, que aplicou o modelo de “construção social” ao criar um menino como menina após sua circuncisão malfeita na infância. Ironicamente, a experiência fracassada de Money sugeriu que o sexo não é uma construção social. O menino, que tinha cromossomos XY, mostrou sinais naturais de masculinidade ao longo de sua vida, apesar de ter sido “socialmente transicionado” por todos que conhecia (incluindo seus pais) desde o nascimento. Ele nem mesmo soube da história de sua própria origem — que ele era, na verdade, homem — até se tornar adulto. Tragicamente, ele cometeu suicídio quando tinha apenas 38 anos. Infelizmente, não é surpresa que Money também o tenha molestado durante os exames médicos. Curiosamente, Foucault (que é acusado de estuprar meninos tunisianos), juntamente com seus colegas pós-modernistas franceses Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze e Jean Paul Sartre, assinou uma petição para remover totalmente as leis de “idade de consentimento” na França. Na academia contemporânea, os pós-modernistas escrevem sobre “erotismo que transgride as fronteiras geracionais” e apoiam o “Drag Queen Story Hour”, cujo objetivo é expor crianças pequenas a fetiches sexuais obscuros.
Do ponto de vista filosófico, é muito simples provar que o termo “gênero” é estranho quando usado para pessoas. Se alguém pensa que sexo só pode ser usado para diferenças binárias, enquanto gênero é mais apropriado para diferenças estatísticas, não poderia estar mais enganado. O único binário verdadeiro são os gametas, embora órgãos reprodutivos como os genitais cheguem muito perto disso. A intelectualidade atual tende a chamar o maior interesse das mulheres pelas pessoas (ou o maior interesse dos homens pelas coisas) de “diferença de gênero”, devido às curvas de sino sobrepostas que ilustram essas diferenças, mas ninguém chamaria a altura maior dos homens de “diferença de gênero”. Qualquer pessoa sensata o suficiente para reconhecer o fenômeno chama a altura maior dos homens de “diferença de sexo” e, como a maioria das diferenças de sexo, ela também é representada por curvas de sino sobrepostas.
Como muitos animais, os seres humanos são do sexo masculino ou do sexo feminino, e com essa natureza vêm algumas diferenças binárias, como gametas e genitais, bem como uma série de diferenças estatísticas. (E embora um determinado indivíduo do sexo masculino, por exemplo, possa ter uma apresentação mais tipicamente do sexo feminino em uma determinada característica, ele tenderá a corresponder ao padrão masculino quando integrado em todas as características). Outros ainda afirmam que o “gênero” é da mente. Mas implícito na divisão entre “gênero” para a mente e “sexo” para o corpo está, é claro, o tipo de dualismo mente-corpo negado pela biologia moderna. A mente evoluiu por seleção natural e, de alguma forma, emerge do cérebro — um pouco de “morfologia bruta” para ser talvez indelicado com o objeto mais complexo do universo conhecido.
Em um nível ainda mais simples, considere o seguinte cenário. Alguém da área de Humanidades funda um novo departamento chamado Estudos de Zenergia. A “zenergia” é supostamente uma coisa totalmente nova, completamente distinta do conceito de energia bem conhecido nos departamentos de Física. No entanto, a medição da “zenergia” é feita nas mesmas unidades que a energia e, além disso, o valor específico da “zenergia” de um objeto se correlaciona com a magnitude de sua energia em quase 1. Nos departamentos de Estudos de Zenergia e na cultura popular que eles influenciam, essas correlações massivas são consideradas meras coincidências: diz-se que a energia não tem muita influência causal, se é que tem alguma, sobre a “zenergia”. Você consegue imaginar tal conceito se popularizando, ainda mais nos departamentos de Física? No entanto, essa é exatamente a realidade que enfrentamos quando se trata de “gênero”.
É claro que “disforia” é um termo estranho, quando “dismorfia” e, especificamente, “dismorfia corporal” estão tão prontamente disponíveis para analogia linguística e psiquiátrica. Mais uma vez, o dualismo mente-corpo pode explicar a diferença. “Disforia” refere-se a um aspecto do estado mental de uma pessoa, enquanto “dismorfia” é a insatisfação de uma pessoa com seu estado físico. É claro que ambos são delírios mentais sobre o corpo físico perfeitamente normal de uma pessoa, mas, ao colocar a ênfase no estado mental da pessoa, os estudiosos de Gênero argumentam que a enfermidade pode ser descarregada nas massas intolerantes. Na visão deles, enquanto os dismórficos corporais sofrem com suas próprias ilusões, os “disforicos de gênero” sofrem com a ilusão inversa das massas. (Os acadêmicos de Estudos da Obesidade estão trabalhando para importar esse estado de coisas também para a dismorfia corporal, por meio de seu movimento de “positividade corporal”, no qual pretendem ter falsificado a utilidade do IMC e descoberto a “saúde em todos os tamanhos”.)
Assim, enquanto a “disforia de gênero” passou a ser entendida como um transtorno de identidade (aparentemente sofrido pelo resto da sociedade que teimosamente não percebe o indivíduo adequadamente), todas as outras ilusões são vistas exatamente da maneira oposta. Da esquizofrenia aos membros fantasmas e ao transtorno obsessivo-compulsivo: uma pessoa cujas crenças não estão de acordo com a realidade externa básica e cujas ilusões estão causando sofrimento pessoal é entendida como necessitando de terapia de exposição. Além disso, enquanto os casos clássicos de “disforia de gênero” eram meninos (muitas vezes um autoginefílico), os novos casos são meninas adolescentes (o grupo com maior risco de transtornos como dismorfia corporal e histeria em massa, passando pelo difícil período de desenvolvimento das características sexuais secundárias).
Adotar o termo alternativo “dismorfia sexual” tem várias vantagens. Em primeiro lugar, elimina esse absurdo sobre pessoas “de gênero” e afirma claramente que a variável em jogo é o sexo. Em segundo lugar, desmistifica ao emprestar o termo “dismorfia” da “dismorfia corporal” e, com sorte, junto com ele, a compreensão de que esses indivíduos estão sofrendo de uma ilusão que deve ser tratada pela exposição à realidade (ou algum outro tratamento eficaz que busque minimizar a ilusão do paciente).
Além disso, como todos já estão familiarizados com o contágio social da dismorfia corporal em meninas jovens, alimentado pelas mídias sociais, a dismorfia sexual pode ser entendida como tendo uma etiologia semelhante. Uma reforma na forma como pensamos sobre o sexo e a mente humana pode ajudar a devolver milhares de crianças — futuros homossexuais, mulheres masculinas e, sim, “heterossexuais cisnormativos” — aos seus caminhos normais de desenvolvimento. Mesmo que a terapia de exposição não funcione para os casos raros e genuínos da velha guarda desse transtorno mental, ela quase certamente funcionará para a nova geração de jovens que sofrem os efeitos da ideologia de gênero.
Fonte da tradução na Aporia Magazine, em 12 de novembro de 2025.
Tradução: Larissa Souza.
Steven Gussman é cientista e desenvolvedor de videogames na costa leste dos Estados Unidos. Ele é autor e editor independente de The Philosophy Of Science.
N. da T.: Em inglês “genre”, como em “gênero musical”.
N. da T.: Em inglês, “they/them”. Em português, que não possui equivalente gramaticalmente adequado para pronomes neutros no singular, os proponentes das ideologias de gênero têm usado adaptações como “elu” ou “elx”.



