Psicologia evolucionista: o "porquê" é tão importante quanto o "como"
Por Laith Al-Shawaf1
A vespa-esmeralda (Ampulex compressa) parasita a barata comum com uma sofisticação que mexe com nossa imaginação. A cena mórbida se desenrola da seguinte maneira. A vespa começa injetando um composto venenoso no corpo da barata, paralisando temporariamente sua vítima. Em seguida, ela procura duas áreas específicas do cérebro da barata, injetando nelas um coquetel neuroquímico feito sob medida. Esta injeção tem um efeito cirurgicamente preciso: ela deixa intactas as habilidades motoras da barata, mas rouba sua vontade de escapar - uma combinação surpreendente que se tornará importante mais tarde. Finalmente, a vespa dá seu golpe de misericórdia: arrasta a barata zumbificada para o túmulo, deposita um ovo sobre ela e a enterra viva. Por que a vespa se preocupa em fazer essas coisas específicas nesta exata sequência?
Sessenta anos atrás, o grande etólogo Niko Tinbergen argumentou que, a fim de alcançar uma compreensão completa de qualquer característica ou sistema biológico, temos que responder a quatro perguntas distintas: (1) como o sistema se desenvolve durante a vida de um organismo (conhecido como ontogenia ou desenvolvimento); (2) como o sistema funciona no presente imediato (mecanismo ou causalidade imediata); (3) como a característica evoluiu ao longo do tempo (filogenia); e (4) por que o traço evoluiu (sua função ou valor adaptativo). Essas quatro questões - ontogenia, mecanismo, filogenia e função - representam diferentes "níveis de análise". O insight principal de Tinbergen foi que, se você quer entender algo sobre um organismo, você precisa de todos os quatro níveis de análise.
Esses quatro níveis podem ser agrupados em duas categorias mais amplas, conhecidas como os níveis de análise proximal e distal (ver também Mayr, 1961). O nível proximal consiste em ontogenia e mecanismo, que explicam como a característica se desenvolveu durante a vida de um organismo e como ela funciona no presente imediato. O nível distal consiste em filogenia e função, tratando como e por que a característica evoluiu. Explicações proximais explicam como algo funciona - por exemplo, como funciona o fígado ou o que causa o reflexo de sucção em bebês. Explicações distais explicam por quais razões o sistema funciona dessa maneira, ou por quais outras ele existe em primeiro lugar - por exemplo, por que temos um fígado (para filtrar o sangue, desintoxicar venenos e facilitar a digestão) ou por que o reflexo de sucção evoluiu (para facilitar a amamentação). Os níveis proximal e distal de análise respondem a diferentes questões sobre o mesmo fenômeno, e ambos são cruciais para uma compreensão completa deste.
Não seria muito exagero dizer que a fusão dos níveis proximal e distal de análise é um dos maiores problemas da psicologia hoje, a par de questões como a crise de replicação (ver aqui e aqui), a ausência de uma estrutura teórica abrangente para a disciplina e a forte dependência de amostras WEIRD.2
Resolver esse problema é fundamental para o avanço do campo.
A medonha cena descrita acima explica como a vespa parasita seu hospedeiro - esse é o nível de análise proximal. Uma análise proximal completa explicaria a base fisiológica do comportamento, incluindo como os mecanismos responsáveis pelo comportamento se desenvolvem durante a vida da vespa e muito mais.
O nível distal de análise é diferente. Ele explica o porquê dessas etapas - por que a vespa se envolve nesses comportamentos específicos? A resposta: a primeira injeção serve para paralisar temporariamente a barata, dando à vespa tempo suficiente para localizar as áreas precisas do cérebro da barata que ela precisa atingir em seguida.
Por que a segunda injeção deixa as habilidades motoras da barata intactas, mas remove sua vontade de escapar? Porque a minúscula vespa enfrenta um problema: ela precisa arrastar a barata até o local onde irá enterrá-la, mas é muito pequena para fazer isso se a vítima estiver paralisada. Portanto, a injeção da vespa anula a capacidade da barata de iniciar o movimento, mas não paralisa de verdade as pernas da barata - desta forma, quando a vespa começa a arrastar a barata para o ninho, as pernas da barata automaticamente se movem em conjunto com o resto do corpo, ajudando no processo. Outras soluções não teriam funcionado: se a barata tivesse ficado paralisada, a vespa não teria sido capaz de arrastá-la; e se a barata tivesse mantido sua capacidade de iniciar os próprios movimentos, teria escapado. A solução da vespa - erradicar a capacidade da barata de iniciar seu próprio movimento, mas deixar a mobilidade de suas pernas intacta - evita ambos os problemas.
Finalmente, ao final do processo, por que a vespa deposita um ovo na barata e depois a enterra viva? Porque quando a larva da vespa eclodir, precisará de uma vítima viva para se alimentar. De fato, a vespa faz algo notável para facilitar isso: sua injeção retarda o metabolismo da barata, mantendo sua vítima viva por mais tempo. Isso garante que a barata ainda estará fresca quando os filhos da vespa eclodirem, famintos por sua refeição de dar pesadelos.3
Para entender corretamente o que a vespa está fazendo, devemos responder a duas questões diferentes: a proximal (como a vespa consegue fazer essas coisas?) e a distal (por que a vespa as faz?). Qualquer resposta que não aborde os dois níveis de análise está incompleta.
Este é um princípio bem estabelecido na biologia, e seria difícil exagerar o alcance de suas implicações. Ele serve como base teórica para todas as pesquisas sobre comportamento animal. Seu criador, Niko Tinbergen, foi em 1973 co-recebedor do único Prêmio Nobel já concedido pelo estudo do comportamento animal. Não há um único biólogo estudando o comportamento que não esteja familiarizado com as quatro questões e seu agrupamento nessas duas categorias maiores. Já na psicologia, a situação é muito diferente: o princípio tem o mesmo imenso valor científico e implicações de longo alcance, mas apenas uma minoria de psicólogos está familiarizada com ele.
Por mais de um século, a psicologia foi dominada por um foco quase exclusivo no nível proximal de análise. Todos os tipos de explicação mais familiares em psicologia são proximais, incluindo explicações cognitivas, neurofisiológicas, socioculturais, de aprendizagem e de desenvolvimento. Todos eles são importantes, é claro, e todos são necessários para uma ciência da mente abrangente. Mas eles deixam de fora todo um nível de análise.
As explicações distais são necessárias para uma completa ciência da mente
Por que a partição explicativa dos fenômenos em diferentes níveis de análise se aplicaria apenas à biologia, e não à psicologia? Assim como o coração e o fígado, os aspectos da mente estão sujeitos às mesmas quatro questões: como se desenvolvem durante a vida do organismo (ontogenia ou desenvolvimento); como funcionam no momento presente (mecanismo); como eles evoluíram ao longo do tempo (filogenia); e por que eles evoluíram (função). Se quisermos uma compreensão completa, digamos, da atenção, memória ou emoção, precisaremos abordar esses aspectos da mente tanto no nível proximal quanto no nível distal de análise.
Isso não significa que todos os aspectos de nossas mentes possuem uma função evolutiva. Como os psicólogos evolucionistas dirão, nossas mentes contêm muitos subprodutos (efeitos colaterais) sem função evolutiva. Mas mesmo esses subprodutos sem função exigem o nível distal de análise: eles evoluíram ao longo do tempo (portanto, eles exigem o nível filogenético de análise) e são subprodutos de adaptações que têm uma função biológica (portanto, eles exigem o nível funcional de análise). Simplesmente não há como contornar a conclusão de que o nível distal de análise se aplica à mente e a como ela funciona.
Os psicólogos que se concentram apenas em questões proximais ainda podem fazer grandes avanços na descoberta de como a mente funciona. A história da psicologia no século XX é um testemunho disso. Mas o progresso se torna mais rápido quando você incorpora o nível distal de análise. Mais importante ainda, é impossível construir uma ciência completa da mente se você ignorar uma das duas questões básicas que competem a todos os organismos vivos. Explicações evolutivas não são um complemento opcional em psicologia, como muitos parecem pensar; elas são indispensáveis. Se quisermos uma ciência da mente mais rica e completa, não podemos omitir metade da equação explicativa.
Novos horizontes
Considere a seguinte questão: na maioria das espécies que se reproduzem sexualmente, por que a proporção dos sexos gira em torno de 1:1? Em espécies como os humanos, com um sistema de determinação de sexo XY, a resposta proximal é bem conhecida: aproximadamente, cada prole herdará um cromossomo X de sua mãe e um X ou um Y de seu pai, com 50% de chance de cada. Portanto, cada novo zigoto tem cerca de 50% de chance de ser XY (macho) e 50% de chance de ser XX (fêmea), fazendo com que a proporção entre os sexos da população seja de aproximadamente um para um. Por mais convincente que seja essa explicação, ela apresenta apenas metade da resposta - a metade proximal.
No que mais uma resposta evolucionista poderia contribuir? Pode parecer que não há mais nada para explicar. A explicação distal, entretanto, desmente essa expectativa.
É mais ou menos assim: imagine que, numa população, os nascimentos femininos são menos comuns do que os nascimentos masculinos; há, portanto, menos fêmeas adultas nessa população. Como as fêmeas são mais raras, em média, elas têm maior sucesso reprodutivo do que os machos.4
Como as fêmeas têm maior sucesso reprodutivo, indivíduos que são geneticamente predispostos a produzir filhas acabam tendo mais descendentes, em média. Isso faz com que os genes que predispõem à produção de filhas aumentem em frequência na população. Isso, por sua vez, torna os nascimentos femininos mais comuns. À medida que os nascimentos femininos se tornam mais comuns, o aumento do sucesso reprodutivo associado ao sexo feminino é reduzido, eventualmente zerando quando a proporção sexual chega a 1:1. Dessa forma, uma população com uma tendência inicial para menos fêmeas eventualmente gravitará em torno de uma proporção sexual de 1:1. O mesmo argumento é válido se, nesse exemplo, você substituir as fêmeas por machos. Em outras palavras, uma população que começa com menos nascimentos do sexo masculino também tende a convergir para uma proporção sexual de 1:1.
A principal coisa a perceber sobre esta explicação distal é que ela não é uma alternativa à resposta genética proximal; mas sim um complemento.
Observe também que a explicação distal lança uma nova luz sobre a proporção de 1:1 entre os sexos. Quando você descobre a explicação distal para um fenômeno em fisiologia, psicologia ou comportamento, você aprende algo genuinamente novo, mesmo que já conheça a explicação proximal. E, crucialmente, sua nova camada de compreensão não é redundante nem está em conflito com sua compreensão proximal já existente. Em vez disso, complementa o que você sabe, completando o quadro. A explicação distal também deixa claro que qualquer sentido de completude epistêmica que tínhamos anteriormente era uma ilusão: na realidade, tínhamos apenas metade da explicação.
As análises distais também oferecem benefícios explicativos e preditivos adicionais. Por exemplo, esta análise da proporção sexual de 1:1 produz previsões sobre quais espécies não exibirão essa proporção e por quê. As explicações distais em psicologia têm as mesmas virtudes científicas: lançam uma nova luz, explicam as descobertas existentes e predizem novas. Isso é verdadeiro para uma ampla variedade de fenômenos psicológicos, incluindo:
Raiva, orgulho, vergonha, cognição moral, preferências de parceiro, saúde mental, personality, política, aprendizado social, vigilância epistêmica, pensamento espacial e numérico, conhecimento básico, doenças, educação, guerra, fome, repulsa, psicopatologia, raciocínio, envelhecimento, câncer, psicopatia, crença religiosa, cognição animal, machine learning e inteligência artificial, desenvolvimento infantil, parentalidade, gerenciamento de status, diferenças psicológicas entre sexos, controle de natalidade, distúrbios alimentares, reputação, punições, vingança, altruísmo, empatia, emoção, ansiedade, amizade, gratidão, luto, pensamento recursivo, vieses cognitivos, discurso indireto, senso comum e nossa capacidade de detectar violadores de contratos sociais.
A distinção proximal-distal pode transformar conflitos desnecessários em uma troca produtiva
Aceitar a distinção proximal-distal tem outro efeito salutar: pode transformar conflitos desnecessários em uma troca produtiva. Por exemplo, uma das falsas dicotomias mais comuns em psicologia é a falácia da evolução vs. aprendizagem.
O senso comum nas ciências sociais é que, se um comportamento ou traço psicológico é aprendido, ele não é fruto da evolução e vice-versa. Esta é uma forma imprecisa e profundamente enganosa de conceituar a questão. A falácia pode ser atribuída à distinção proximal-distal: as explicações evolucionistas estão no nível distal de análise, enquanto o aprendizado está no nível proximal. Portanto, elas não estão em conflito. Na verdade, não apenas as duas são perfeitamente compatíveis, como, em muitos casos, precisaremos invocar ambas para explicar de forma abrangente os fatos da psicologia e do comportamento.
Nas iterações nativistas vs. empiristas mais antigas deste debate, os principais erros dos respectivos campos foram (1) estabelecer a noção errônea de que o aprendizado é relativamente sem importância e os organismos nascem com todo o conhecimento de que precisam, e (2) a igualmente incorreta noção de que os organismos aprendem tudo o que sabem e a evolução não é necessária para explicar os comportamentos aprendidos. A adoção de apenas uma ferramenta conceitual é desacertada, e uma vez que nos livramos dessas afirmações imprecisas, estamos livres para substituí-las pelas seguintes ideias mutuamente compatíveis: (1) o aprendizado é muito importante, (2) os mecanismos de aprendizado existem porque são frutos da evolução e (3) seus padrões de operação refletem os tipos de problemas que eles evoluíram para resolver. Estudar como a mente funciona torna-se uma tarefa mais fácil e frutífera, sem dicotomias conceitualmente confusas que obscurecem nosso pensamento. A distinção proximal-distal ajuda a alcançar isso.
Vale a pena fazer uma pausa para observar que, como as explicações baseadas na aprendizagem, as socioculturais também estão no nível proximal de análise. Isso significa que as explicações evolucionistas e socioculturais também são frequentemente compatíveis. É comum pensar que há algum tipo de tensão inerente entre esses dois tipos de explicação, mas não há - pelo menos não obrigatoriamente (veja este artigo para mais detalhes sobre quando as explicações proximais e distais podem entrar em conflito). Quanto mais difundida essa percepção se torna nas ciências sociais, mais podemos promover a colaboração entre pesquisadores com formações e abordagens teóricas amplamente diferentes.
Bem entendida, então, essa ferramenta conceitual pode ser um catalisador que nos ajuda a construir pontes entre diferentes ciências sociais e biológicas. Ela ajuda a nos empurrar na direção da união de cientistas treinados desigualmente, estudando evolução e influências socioculturais de maneira colaborativa.
Conclusão
A distinção proximal-distal é fundamental para o progresso na psicologia por pelo menos três razões. Em primeiro lugar, a psicologia não pode esperar ser uma ciência abrangente da mente se continuar a ignorar metade da equação explicativa. Em segundo lugar, as explicações distais fornecem uma camada adicional de compreensão, distinta daquela oferecida pela proximal. E, terceiro, aceitar a distinção entre os dois níveis de análise pode transformar conflitos desnecessários em uma troca produtiva.
William James, um dos fundadores da psicologia moderna, costumava ser notavelmente presciente. Ele enfatizou a importância do pensamento evolucionário na psicologia já no final do século XIX. Mais de um século depois, estamos fazendo um progresso real no cumprimento da visão de James. O objetivo final é construir uma ciência madura da mente que explique não apenas como nossos mecanismos psicológicos funcionam, mas também por que funcionam dessa forma e por que existem em primeiro lugar.
Portanto, da próxima vez que você encontrar uma explicação evolucionista de um fenômeno para o qual você já ouviu uma explicação proximal plausível, lembre-se de que as duas normalmente não são alternativas. São explicações complementares que respondem a diferentes questões em diferentes níveis de análise. A explicação proximal com a qual você está familiarizado provavelmente se concentra no aprendizado, na cultura, nos hormônios, no cérebro ou em uma combinação desses. A explicação distal pode, em vez disso, focar em como o comportamento evoluiu de uma forma ancestral, ou por que evoluiu em primeiro lugar. Não apenas não há conflito inerente em jogo, mas é apenas quando combinamos os dois níveis de análise - como o sistema funciona e por que evoluiu dessa forma - que podemos finalmente chegar a uma compreensão completa do fenômeno em questão.
Original em Areo, 20 de julho de 2020.
Tradução: Ágata Cahill
Revisão: Felipe C. Novaes
Algumas adaptações foram feitas para fins de clareza.
Imagem destacada por pch.vector.
Laith Al-Shawaf, Ph.D., é pesquisador e professor assistente de psicologia na Universidade do Colorado. Conduziu pesquisas internacionalmente, estas (com colaboradores) por sua vez apresentada em veículos como a BBC, o Washington Post, The Atlantic, Psychology Today, Slate, o Fórum Econômico Mundial e a Time. Em 2019, a Association for Psychological Science (APS) nomeou-o uma estrela em ascensão.
N. do. R.: WEIRD é uma sigla que significa ocidental, educado, industrializado, rico e democrático (western, educated, industrialized, rich and democratic). Essas seriam as características das sociedades ocidentais, o que cultivaria para seus habitantes uma psicologia bastante singular em comparação com outros povos. Richard Henrich explorou o assunto no excelente The WEIRDest People in the World (As Mais Estranhas Pessoas do Mundo).
N. da T.: Optei por não anexar imagens do processo. Se tiver um estômago forte, porém, assista clicando aqui.
N. da T.: Lembre-se do que foi explorado na primeira parte dessa série: o sexo mais raro, além de mais disputado, tem maior poder de barganha.