Formulado por liberal, “princípio do dano” está sendo usado contra a liberdade
Como uma das passagens mais mal pensadas do "Ensaio sobre a liberdade" está sendo usada para o autoritarismo
Por Rob Lyons, para a série “Cartas da Liberdade” da Academy of Ideas, Reino Unido
Nota do Tradutor - Na monstruosa decisão de 51 páginas do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que censurou no Brasil inteiro a rede social X em 30 de agosto de 2024, aproximando nosso país dos piores regimes autocráticos do mundo, o tirânico juiz comete suas maiores atrocidades intelectuais nas páginas 23 e 24. Na última, ele cita explicitamente o “princípio do dano”, do filósofo John Stuart Mill, para justificar a censura e o abuso de poder. Na pandemia, me deparei com falsos liberais defendendo todo tipo de cassação de liberdades individuais sob a mesma desculpa. Moraes abusou do nome do filósofo, ou o filósofo partilha da responsabilidade quando seu nome é invocado pelos mais ardilosos autoritários camuflados? Creio que o ensaio abaixo de Rob Lyons responde a pergunta.
Bem-vindo às Cartas da Liberdade da Academy of Ideas. Elas são uma modesta tentativa de revigorar a esfera pública e argumentar em prol de uma sociedade mais livre.
Desde a sua fundação, no ano 2000, a Academy of Ideas sediou no Reino Unido milhares de debates públicos, festivais, fóruns e encontros onde pessoas de todas as esferas da vida se reuniram para debater temas frequentemente controversos e desafiar as ortodoxias contemporâneas. Sempre mantivemos um princípio definidor: liberdade de expressão permitida.
O que são as Cartas da Liberdade?
Nem sempre é fácil defender a liberdade. A vida pública pode ter sido recentemente confinada em lockdown, mas já estava em má saúde há algum tempo.
O debate aberto tem sido sufocado pelo clima censório atual, e há pouco apoio cultural para a liberdade como um valor fundamental. O que precisamos é de desacordo barulhento, bem-humorado, e de pessoas dispostas a testar o que a liberdade pode significar hoje.
Nós nos apoiamos nos ombros de gigantes, mas não devemos ser complacentes. Não podemos simplesmente contar com os pensadores do passado para resolver o que significa liberdade hoje, nem para argumentar a seu favor.
Inspiradas na tradição dos panfletos radicais desde o século XVII – feitos para serem debatidos tanto no bar quanto no parlamento – as Cartas da Liberdade prometem fazer você pensar duas vezes. Cada carta faz uma reivindicação de como fazer uma sociedade mais livre aqui e agora.
Esperamos que, munido dessas cartas, você enfrente o desafio de lutar pela liberdade.
— Equipe da Academy of Ideas
Além do Princípio do Dano
“O único propósito pelo qual o poder pode ser exercido legitimamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é para prevenir dano a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é justificativa suficiente. Ele não pode ser compelido legitimamente a agir ou deixar de agir porque isso seria melhor para ele, porque isso o faria mais feliz, ou porque, na opinião de outros, isso seria sábio ou correto. (...) A única parte da conduta de alguém pela qual ele é responsável perante a sociedade é aquela que diz respeito aos outros. Na parte que diz respeito apenas a si mesmo, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano."
– John Stuart Mill, Ensaio Sobre a Liberdade, 1859.
O “princípio do dano” de Mill é frequentemente citado como a defesa definitiva da autonomia pessoal. O Estado não deveria interferir em nossas escolhas privadas, mesmo que a maioria concorde que tais escolhas sejam prejudiciais a nós mesmos, a menos que causem dano a outros. Por exemplo, se eu quiser fumar cigarros, beber álcool ou me envolver em outros comportamentos arriscados, isso deveria ser uma decisão exclusivamente minha. Se eu quisesse expressar uma opinião controversa, deveria ser livre para fazê-lo. Se eu quisesse dirigir um carro ou pegar um avião, independentemente das alegações sobre o impacto disso no planeta, essas são questões exclusivamente minhas.
Embora a formulação de Mill sobre a ideia seja a mais comumente citada, ela não era totalmente nova. Em 1789, na França revolucionária, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão declarou:
“A liberdade consiste na possibilidade de fazer tudo que não cause prejuízo a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites senão aqueles que garantem aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Esses limites só podem ser determinados pela lei.”
Mas os oponentes intrometidos da liberdade, desde os obcecados com o “Estado babá” até os podadores da liberdade de expressão, descobriram que, ao expandir a noção de dano e minar a tolerância, o “princípio do dano” pode ser usado como um argumento contra a liberdade.
Na verdade, esse problema sempre esteve presente no princípio do dano de Mill – ou, pelo menos, na versão simplificada apresentada no início do Ensaio Sobre a Liberdade. Pela lógica, o princípio do dano logo se transforma em uma disputa de “quem causou o maior dano”. Como Bernard E. Harcourt1 observou em um valioso artigo escrito em 1999, o que resta é “uma disputa livre pelo dano: uma cacofonia de argumentos concorrentes sobre danos, sem nenhuma maneira de resolvê-los”:
“À medida que nos aproximamos do final do século XX, estamos testemunhando um desenvolvimento notável no debate sobre a aplicação legal da moralidade. O princípio do dano está efetivamente colapsando sob o peso de seu próprio sucesso. As alegações de dano se tornaram tão onipresentes que o princípio do dano perdeu o sentido: ele não serve mais como um princípio crítico, pois argumentos sobre danos não triviais permeiam o debate. Hoje, a questão não é mais se uma ofensa moral causa dano, mas sim que tipo e qual quantidade de danos a conduta contestada causa, e como esses danos se comparam. Sobre essas questões, o princípio do dano é silencioso. Isso é uma partida radical do discurso liberal teórico e progressista dos anos 1960.”2
Como aqueles que ainda acreditam na liberdade devem responder?
O que é dano?
Muitas coisas podem ser consideradas danosas. Dano físico é óbvio, mas a maioria das pessoas reconhece que outras coisas, como custos financeiros ou danos à reputação, também são prejudiciais. O “dano” poderia incluir sair vitorioso em um processo competitivo, como se candidatar para um emprego lucrativo. O candidato bem-sucedido desfruta de um bom salário e perspectivas, enquanto aqueles que não conseguiram devem continuar a viver com um salário menor (ou nenhum salário). Eles estão em pior situação e poderiam ser considerados prejudicados (teriam sofrido danos). Mas, a menos que algo fraudulento tenha acontecido, aceitamos amplamente que os empregadores têm o direito de escolher quem trabalha para eles. As únicas vítimas prováveis de qualquer fraude são os empregadores – que podem estar contratando um funcionário inútil – não aqueles que não conseguiram o emprego.
A noção de dano continua se expandindo e a disposição para ser tolerante parece estar encolhendo.
Vivemos em sociedades compostas por milhões de pessoas. É inevitável que encontremos coisas que nos irritam e até nos ofendem. Qual é o limite em que o meu incômodo pessoal se torna um dano que sofri, de maneira que seja relevante para o princípio do dano?
Eu não gosto quando outras pessoas tocam música alta demais. Mas se for em um carro passando, o incômodo será breve. Por outro lado, meu vizinho tocando música alta às três da manhã afetará meu sono. Se fosse muito raro, isso ainda poderia ser um “incômodo” e poderíamos decidir tolerar a perturbação. Mas se isso acontecesse todas as noites, seria genuinamente danoso se eu estivesse sempre exausto como resultado. Nesse caso, acho que é razoável ir até lá e pedir educadamente aos meus vizinhos barulhentos que baixem a música, e até chamar as autoridades para evitar que isso continue, caso um pedido educado seja recusado.
Uma ideia-chave que ajuda a lidar com esses desafios é a tolerância. Viver em cidades, em particular, tem muitas vantagens. Mas exige que toleremos as ações dos outros até um ponto substancial. Caso contrário, a vida seria insuportável. Simplesmente não poderíamos viver livres, estaríamos constantemente preocupados que alguma ação ou outra – fazer um churrasco, ter cães que latem – provocaria uma resposta negativa. Mas a noção de dano continua se expandindo e a disposição para ser tolerante parece estar encolhendo.
Quando se trata de saúde, a reinterpretação da noção de “dano” tem sido anátema para a defesa da liberdade.
Por exemplo, a proibição de fumar em lugares “públicos” – alguns dos quais, como bares, são abertos ao público, mas são na verdade lugares privados – foi introduzida em todo o Reino Unido em 2006 e 2007. Argumentos sobre escolha pessoal, tanto de fumantes quanto de proprietários de bares, foram ignorados com base no fato de que fumar – especificamente o fumo “passivo” – causa dano a outros. De fato, a pressão de grupos antitabagismo incluiu novas e extraordinárias alegações, baseadas em pesquisas, de que o fumo passivo poderia estar matando 11.000 pessoas por ano no Reino Unido. (Dica: não, não estava.3)
Como resultado, a escolha de permitir ou não fumar em bares e até mesmo em clubes privados, onde membros comuns do público não têm permissão de entrada rotineira, foi retirada das mãos daqueles que tomariam essa decisão e concedida ao Estado. Permitir fumar nesses lugares “públicos” estaria, efetivamente, além da tolerância razoável – algo simplesmente perigoso demais para ser permitido.
De forma mais ampla, quando se trata de saúde, a reinterpretação da noção de “dano” tem sido anátema para a defesa da liberdade. Mesmo quando a escolha de fumar não é diretamente danosa para os outros, as consequências do fumo podem ser retratadas como danosas. Uma tática frequente no Reino Unido para aqueles que desejam limitar escolhas pessoais de estilo de vida é perguntar sobre o Serviço Nacional de Saúde (NHS).4 Como as pessoas que se envolvem em comportamentos de risco são, em média, mais propensas a adoecer e morrer mais cedo do que aquelas que preferem um estilo de vida saudável, aqueles que querem restringir nossas escolhas argumentam que esses comportamentos arriscados devem ser limitados para evitar que o NHS seja sobrecarregado. Fumantes, beberrões e obesos egoístas estão se comportando em prejuízo a todos que dependem de serviços de saúde financiados pelo Estado e devem ser detidos.5
Na forma apresentada, esse argumento é quase invariavelmente falacioso. Aqueles que morrem mais cedo, na verdade, custam menos ao Estado do que aqueles que vivem uma vida mais longa. Por exemplo, se for verdade, como afirmado, que os fumantes morrem, em média, 10 anos antes dos não fumantes, isso representa uma década de pagamentos de aposentadoria e outros auxílios para pessoas idosas que nunca precisarão ser pagos. E isso sem levar em conta todos os impostos que esses “malfeitores” pagam, o que mais do que cobre qualquer despesa adicional.6 Ainda assim, esse argumento tem uma popularidade considerável.
A expansão da noção de “dano” é como kriptonita para as intenções liberais por trás do princípio do dano.
Muitas alegações sobre riscos à saúde também tendem a incluir elementos que são danos privados, em vez de públicos. Se eu tiro licença do trabalho porque estou doente e perco dinheiro como resultado, isso é negativo tanto para mim quanto para minha família. Mas a realidade é que meu trabalho, mais cedo ou mais tarde, será feito por outra pessoa. Há pouco ou nenhum dano para a sociedade em geral, apenas para mim. Um relatório para o Gabinete do Reino Unido7 até incluiu um valor monetário, calculado de forma duvidosa, para o “custo de impacto emocional” do crime relacionado ao álcool.8 As campanhas de saúde têm lançado a ideia de que perder um dos pais devido a uma morte prematura também é danoso, tanto para a pessoa que morre quanto para a sua família. Mas esses danos privados são da alçada do Estado? A lógica seria uma interferência cada vez maior nas escolhas privadas e familiares.
Esse argumento de “pense nas crianças” é muitas vezes cínico, uma maneira de usar a culpa para alterar o comportamento. É particularmente comum quando usado em relação às mudanças climáticas, cujos impactos, nos dizem, serão mais graves daqui algumas décadas.
De fato, a vigilância dos danos às crianças está sendo escrita na legislação do Reino Unido por meio do Online Safety Bill (Projeto de Lei de Segurança Online). Com seu foco em proteger as crianças de conteúdos “nocivos” – abrangendo pornografia, suicídio, mensagens de ódio e mais – o Projeto de Lei tem o efeito de abrir a porta para a censura do que os adultos podem acessar online. O que é enquadrado como um simples protocolo de proteção infantil tem como consequência tornar as intervenções do Estado na internet mais autoritárias.
A pessoa mais capacitada para entender meu bem-estar, no sentido mais amplo, provavelmente sou eu.
Talvez a expoente mais notável do argumento de "pense nas crianças" seja a ativista climática sueca Greta Thunberg, que notoriamente disse aos líderes mundiais em uma conferência da ONU: “Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias”.9 Mas, ao invés de falar de seu ponto de vista pessoal, de muitas maneiras, Thunberg tem sido apenas uma porta-voz para outros que querem impor a austeridade ecológica ao resto de nós.
Aqui chegamos ao problema dos danos concorrentes. Quando falamos em “salvar o planeta” para o bem das crianças, devemos também perguntar que dano está sendo causado às crianças ao redor do mundo pelos preços de energia em disparada, restrições à mobilidade e tudo o mais. Bilhões de crianças vivem em condições que, pelos padrões ocidentais, são de extrema pobreza. O desenvolvimento das sociedades em que vivem exigirá, até que algo melhor surja, o uso de combustíveis fósseis. Mas os ativistas costumam ver um só lado ao considerar o que é danoso. De fato, se qualquer debate político for reduzido a qual dano é o pior, há um incentivo para exagerar os danos.
E quando olhamos para as políticas projetadas para reduzir os danos, devemos observar a questão como um todo. Eu consideraria danoso ser privado de coisas que me dão prazer. Esse desfrute é a razão pela qual eu gasto dinheiro com bebidas alcoólicas e comidas saborosas. A pessoa mais capacitada para entender meu bem-estar, no sentido mais amplo, provavelmente sou eu.
A expansão da noção de “dano” é como kriptonita para as intenções liberais por trás do princípio do dano. Isso é particularmente verdadeiro hoje quando se trata da questão da liberdade de expressão.
O princípio do dano vs. a liberdade de expressão
Um artigo publicado em setembro de 2020 argumenta:
“Pesquisas recentes revelam os danos tangíveis que os indivíduos sofrem diretamente com expressões preconceituosas, assim como os danos indiretos gerados pela opressão sistêmica e a injustiça epistêmica que o discurso preconceituoso constrói e reforça. Usando a estrutura ética de Mill com uma noção atualizada de dano, podemos concluir que a coerção social não é justificada para restringir qualquer discurso não danoso, por mais ofensivo que seja. No entanto, certas formas de expressão, como insultos preconceituosos, são prejudiciais e não servem para expressar uma opinião genuína, e, portanto, não merecem a proteção da liberdade de expressão.”10
A noção de que palavras são equivalentes à violência está se tornando comum. Não há dúvida de que palavras podem ser dolorosas ou irritantes. Em consequência, normalmente nos esforçamos para evitar ofender as pessoas sem uma boa razão. Mas, se aceitarmos a noção de que chateação ou ofensa são equivalentes a ferimentos físicos, perdemos a perspectiva e abrimos a possibilidade de que nada possa ser dito – nem mesmo um argumento calmo e razoável – se isso incomodar alguém. (Alguém poderia retrucar àqueles que acreditam que palavras realmente são perigosas: “Vamos lá fora. Você vem para cima de mim com as palavras mais maldosas que conseguir pensar, eu parto para cima de você com um taco de beisebol, e vamos ver quem ganha.”)
O espetáculo que ocorreu na Universidade de Oxford em maio de 2023 é um exemplo perfeito disso. Antes que uma discussão com a filósofa e acadêmica crítica de gênero,11 professora Kathleen Stock, pudesse acontecer, um ativista trans, usando uma camiseta que dizia “chega de crianças trans mortas”, colou-se ao chão em protesto. No Twitter, o ativista explicou que as “consequências” da expressão “perigosa e odiosa” de Stock deveriam ser consideradas, incluindo o potencial para “crianças trans mortas”. Stock não é a primeira figura pública a ser ameaçada de censura em campi universitários. De políticas de exclusão (no-platform) a proibições de palestrantes, grande parte da oposição à liberdade de expressão nas universidades do Reino Unido usa a narrativa de impedir o “dano”.
Não há necessidade de proibir discursos simplesmente porque não gostamos de seu conteúdo.
A alegação de que palavras podem ser prejudiciais por si sós levanta todas as questões antigas em torno da liberdade de expressão. Quem decide o que é “preconceituoso” e o que é “prejudicial” ou “danoso”? Ser ofendido é uma forma de dano? Uma categoria de expressão muitas vezes distinta é a incitação à violência – certamente, essa seria uma exceção à proteção da liberdade de expressão? Mas o problema com a incitação não são as palavras, é a violência subsequente (se houver). Mesmo as restrições à incitação exigem consideração cuidadosa.
Se levamos a noção de dano ao extremo, quase tudo que não gostamos poderia ser descrito como danoso. Mas, se quisermos viver em uma sociedade livre, temos que tolerar coisas de que não gostamos.
Resgatando o princípio do dano?
Talvez haja uma maneira pela qual poderíamos resgatar o princípio do dano: devemos ser livres para fazer o que quisermos, desde que não causemos dano aos outros onde eles não possam evitar esse dano. Se fumar é permitido em um bar, isso deve ser uma questão para o proprietário, pois não há um direito de beber em um bar específico. Restringir o fumo em transportes públicos, que muitas vezes são uma necessidade para muitas pessoas, é aceitável. Melhor ainda, criamos espaços onde as pessoas podem fumar, se assim desejarem – como é comum na Europa continental, mas não no Reino Unido. Por exemplo, aeroportos europeus frequentemente têm cabines bem ventiladas para que os fumantes possam fumar. Por que não áreas de fumo em bares?
Se nos ofendemos com certas palavras ou ideias, geralmente podemos nos afastar ou desligar. Melhor ainda, podemos nos engajar com essas ideias com argumentos racionais. Não há necessidade de proibir discursos simplesmente porque não gostamos de seu conteúdo.
Também precisamos levar a sério o significado de dano. A expressão de opiniões inevitavelmente termina em irritação, até mesmo ofensa, aos outros. Muitos de nós estamos bem familiarizados com os debates que fervilham hoje, particularmente nas redes sociais, sobre questões como aborto, gênero, racismo, mudanças climáticas e muito mais. As paixões se agitam. Quem decide o que é uma expressão aceitável em tais circunstâncias? A liberdade de expressar uma opinião e tolerar as opiniões das quais discordamos é crucial para que a sociedade progrida.
Exigindo tolerância
O problema de tentar resgatar o princípio do dano, ao tentar encontrar uma versão mais modesta e razoável dele, é que a razoabilidade parece estar em falta. As coisas pioraram ainda mais desde que Harcourt escreveu aquela reflexão, há mais de duas décadas. Quando a noção de dano está ficando cada vez mais complicada sem necessidade, quando qualquer leve ofensa verbal pode ser transformada em uma lesão psicológica profunda ou uma baforada de fumaça de cigarro é considerada veneno aéreo, não podemos confiar no princípio do dano para defender nossas liberdades.
Devemos exigir que tenhamos o direito de fazer coisas que possam incomodar ou ofender aos outros, dentro de limites. Precisamos nos afastar do utilitarismo light do princípio do dano e afirmar valores. Onde é possível que outros exijam um direito de segurança contra experimentar o dano – muitas vezes entendido em termos excessivamente amplos – devemos afirmar o valor da liberdade. Fazer o contrário é sacrificar nossa capacidade de escolher como queremos viver e debater para atender ao capricho das almas mais sensíveis. É notável que não falamos mais apenas em “dano”, mas em “dano psicológico” – um novo conceito que encerra em si a mudança na direção de policiar nossos pensamentos e sentimentos mais íntimos.
Isso não se trata apenas do Estado contra o resto de nós, embora aqueles que desejam expandir a noção de dano muitas vezes exijam que os “infratores” recém-inventados enfrentem o poder da lei. Trata-se de um senso geral de como vivemos juntos como sociedade. Quando nossas liberdades estão sendo questionadas, precisamos parar de nos desculpar por querermos viver livremente.
Claro, o que é meramente irritante e o que é genuinamente danoso sempre será difícil de negociar. Mas, para aqueles de nós que querem mais liberdade, é hora de exigir maior tolerância em relação às nossas escolhas. Se você não gosta do tumulto e da agitação da cidade, vá para o campo – sem dúvida você encontrará muitas coisas que o irritarão lá também. Se você não gosta de uma ideia ou debate em particular, desligue-o ou contra-argumente, mas não tente silenciá-lo.
O princípio do dano de Mill, conforme originalmente pretendido, soa como uma base decente para fazer a defesa da liberdade. Mas, graças à maneira como a noção de dano foi expandida a ponto de ficar irreconhecível, hoje não é mais suficiente. Se quisermos desfrutar de liberdade, precisamos exigir o direito de ofender as sensibilidades daqueles que, com grande alarde, querem nos negar essa liberdade.
Rob Lyons é diretor de ciência e tecnologia na Academy of Ideas e um jornalista que escreveu para uma ampla gama de publicações. Ele é autor de Panic on a Plate: How society developed an eating disorder (trad. livre: “Pânico no prato: como a sociedade desenvolveu um transtorno alimentar”, 2011). Ele também escreveu reportagens sobre impostos sobre o açúcar, o impacto da proibição de fumar em bares e as guerras culturais sobre a nicotina. Ele é um comentarista frequente na TV e no rádio britânicos.
© 2023 Academy of Ideas Ltd. Tradução autorizada. Original: “Beyond the Harm Principle”.
N. do T.: Bernard Harcourt (1963-) é um jurista e professor de direito na Universidade Columbia em Nova York e na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS) em Paris.
Harcourt, Bernard E, “The Collapse of the Harm Principle”, Journal of Criminal Law and Criminology, outono de 1999.
Lyons, Rob, ‘Smoke alarm’, Precautionary Tales, 4 de março de 2005.
N. do T.: Criado no pós-guerra, o NHS foi a inspiração para o Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil.
Por exemplo: Action on Smoking and Health, “Fumar custa à sociedade 17 bilhões de libras, cinco bilhões a mais do que nas estimativas anteriores”, 14 de janeiro de 2022; e Public Health England, “Questão de saúde: a obesidade e o ambiente alimentar”, 31 de março de 2017. (Títulos em tradução livre.)
Snowdon, Christopher, “Death and Taxes: Why longer lives cost money”, Institute of Economic Affairs, 17 de dezembro de 2015.
N. do T.: Equivalente à Casa Civil da Presidência da República no Brasil.
Full Fact, “How do you measure the ‘emotional costs’ of alcohol abuse?”, 29 de março de 2012.
Reuters, “Greta Thunberg para cúpula da ONU: ‘vocês roubaram meus sonhos’”, 23 de setembro de 2019.
Bell, Melina Constantine, “John Stuart Mill’s harm principle and free speech: expanding the notion of harm”, Utilitas, setembro de 2020.
N. do T. Intitula-se feminismo “crítico de gênero” a corrente de pensamento dentro desse ativismo que acredita que ser mulher é pertencer a uma categoria oprimida socialmente e imposta (o “gênero”) baseada no sexo biológico, que seria fixo. Como consequência, feministas críticas de gênero não acreditam que é possível que um homem biológico possa ter uma “identidade de gênero” feminina, rejeitando os transexuais.