Ativistas Honestos e Parasitas de Justiça
A maioria das pessoas valoriza a justiça: é comum obter um senso de satisfação quando se vê que um mal cometido recebeu uma retribuição proporcional. Também é comum que esse senso de proporcionalidade seja corrompido por tendências humanas inatas a vieses irracionais. Há indivíduos com talento especial para manipular o ultraje moral do público, mas o grupo que leva essa manipulação ao seu limite lógico nem sempre recebe o foco que merece, mesmo que a destruição causada por seus membros esteja mais evidente do que nunca.
Para essas pessoas, popularizou-se o termo “justiceiro social” (social justice warrior, em inglês), criado para descrever uma categoria particular e histriônica de ativista que se apropria de causas reais, sobretudo os direitos de minorias, para benefício próprio. Contudo, pela própria natureza do termo, e pela forma como é usado, a distinção entre os ativistas honestos e aqueles para os quais ele se aplica nem sempre é tão clara, e essa confusão é deliberadamente reforçada pelo segundo grupo. Neste artigo, proponho um termo alternativo, mais indicativo da ameaça que representam, e uma análise de suas características e do que os motiva.
“Parasitas de justiça” são ativistas autointitulados que se distinguem de ativistas honestos na relação que mantêm com o próprio conceito de “justiça”: enquanto os honestos buscam reparar uma injustiça cometida a determinado grupo, parasitas de justiça buscam agravar a percepção da injustiça ao ponto em que se torna desproporcional, ou criar uma percepção de injustiça onde essa não existe. O benefício que o parasita de justiça obtém por meio disso depende de se ele está ou não incluso no grupo supostamente injustiçado. Para os que se incluem no grupo, o objetivo é manter e maximizar a percepção do próprio status de vítima perante a sociedade, para exigir reparações que nunca lhes foram devidas de fato, além de tratamento diferenciado sob o pretexto de “equidade”. Para os que não se incluem, o objetivo é demonstrar superioridade moral e pertencimento à tribo política dos marginalizados, o que pode lhes conferir um senso de propósito.
Não é necessário que um ativista esteja consciente dessas motivações para que elas existam, e é possível que ele tenha mesmo se convencido de que está agindo no melhor interesse dos oprimidos. Contudo, a incapacidade de fazer uma análise racional da própria causa revela uma expectativa infantil sobre a realidade: nenhum indivíduo é responsável pelos próprios problemas, que sempre necessitam de algum culpado externo e autoridade interventora. É difícil dizer quanto disso se deve à ignorância ou à desonestidade.
Embora, a princípio, não seja uma obviedade determinar se as demandas de um ativista são justificadas ou não, parasitas de justiça possuem um padrão claro de comportamento:
1. Justificativas para a hipocrisia e condescendência aos grupos favorecidos
Para um ativista honesto, não é necessário ter o mesmo nível de preocupação para com todos os grupos injustiçados na humanidade, embora isso possa ser visto como uma virtude. Não é surpreendente que uma mulher vítima de violência doméstica tenha um interesse particular em ajudar vítimas do mesmo tipo, mesmo que representem apenas uma parcela de todas as pessoas injustiçadas. Isso, por si só, não é o bastante para que ela seja acusada de hipocrisia, pois dispõe de recursos limitados para lidar com os problemas que percebe, e precisa definir sua prioridade.
Parasitas de justiça, por outro lado, moldam parte considerável de sua ideologia para tentar justificar a própria hipocrisia da forma mais convincente possível. Como o termo tende a ser usado indevidamente como um insulto genérico, é necessária uma definição: hipocrisia, neste contexto, se refere ao comportamento de declarar uma posição moral que não corresponde com a realidade, condenando um comportamento alheio, quando a própria pessoa que o condena o pratica.
Quando um ativista tenta redefinir o termo “racismo”, com significado já estabelecido e sem distinção de quem pode praticá-lo ou ser afetado por ele, para que passe a significar algo que apenas brancos podem praticar contra negros, isso é uma tentativa de diminuir a gravidade aparente dos atos de um negro racista, por exemplo. Para o parasita de justiça, não importa o quão graves sejam as ações do grupo favorecido por ele: termos como “dívida histórica” (sempre vaga e imensurável), “sistêmico” e “estrutural” podem ser empregados à vontade para justificar qualquer ato. Em momento algum é esperado que se atinja o mesmo padrão de comportamento que se exige do grupo “opressor”, ou sequer é especificado o momento em que a “dívida histórica” pode ser considerada paga. Porque a “dívida histórica”, aos olhos deles, é infinita.
Quando o parasita de justiça não pertence à minoria que diz defender, mas deseja se envolver na causa, as ferramentas usadas para justificar a hipocrisia se transformam em condescendência. Não só justificam o comportamento ruim do grupo favorecido, como também o tratam como incapaz de superar os próprios problemas sem intervenção externa. Ao mesmo tempo em que consideram injusto que, por exemplo, mulheres ou negros sejam vistos como menos capazes, lutam pela implantação de cotas e padrões de admissão diferenciados, garantindo a perpetuação do estereótipo. Contudo, a forma mais perversa dessa hipocrisia e condescendência vem acompanhada do relativismo moral e cultural, ao ponto de os atos vistos como mais repulsivos aos olhos dos parasitas de justiça, quando feitos pelo “opressor”, se tornarem algo digno de respeito quando praticados por culturas distintas da ocidental ou por membros notáveis de uma ideologia aliada. Apontar que países islâmicos são os que mais restringem a liberdade das mulheres e violam os direitos de homossexuais, sendo que tal comportamento está de total acordo com seu cânone religioso, é “islamofobia”. O racismo e homofobia de revolucionários socialistas como Che Guevara, ou até mesmo Marx, são tidos como irrelevantes. O fato de Mao ter matado algo em torno de cinco vezes o que Hitler matou também é ignorado.
2. Oportunismo e busca pelo status de vítima
Em complemento às tentativas de justificar a própria hipocrisia, a aparência de vítima, ou de representante das vítimas, é almejada por parasitas de justiça. Para tanto, eles buscam atiçar as tendências humanas ao tribalismo, que se manifesta na mentalidade “mexeu com um, mexeu com todos” que vários adotam. Parasitas de justiça sabem como tirar proveito de atos cometidos por indivíduos contra indivíduos (o estupro de uma mulher, a morte de um negro nas mãos de um policial) para reivindicar as dores da vítima e os direitos de exigir compensações, com base no fato de que pertencem ao mesmo grupo arbitrariamente escolhido, seja etnia, religião, sexo, ou o que for conveniente para se colocar como vítima compartilhada do crime. Da mesma forma, todos os que pertencem ao grupo do autor do crime são culpados por associação, por mais inocentes ou bem-intencionados que sejam. Na tentativa de erodir a própria noção de indivíduo, o ativista desonesto reduz cada pessoa aos grupos acidentais a que pertence, e somente leva em conta suas ações se estas corroborarem a imagem de opressor.
Quando se apropriar do status alheio de vítima não é o bastante, parasitas de justiça ignoram dados que reflitam algo contrário à sua narrativa, ou forjam estatísticas. Isso se vê, por exemplo, na insistência de feministas em propagar a estatística disparatada de que “uma em quatro mulheres é estuprada”, ou em afirmar que toda diferença salarial entre homens e mulheres é devida ao machismo, ignorando diferenças médias inatas de interesses e aptidões. Uma feminista radical pode ler as afirmações anteriores e demandar fontes, mas, na maioria dos casos, não exige o mesmo nível de rigor para as estatísticas que a favorecem.
Uma consequência dessa busca pelo status de vítima é que parasitas de justiça nunca se satisfazem com o progresso que ativistas honestos já obtiveram. Insatisfação eterna é uma de suas características inerentes, porque admitir vitória na causa é equivalente a abdicar do status aparente de vítima. Por consequência, parasitas de justiça na realidade não querem que as causas pelas quais dizem lutar sejam resolvidas, e, quando são resolvidas, torna-se necessário justificar o ativismo eterno de outra forma, fabricando novas categorias de ofensa, tais como “microagressões”, ou atribuindo qualquer inconveniência com que se deparam no dia-a-dia a alguma estrutura social criada pelo suposto opressor.
Essa insatisfação eterna também está ligada ao cerne do que define o parasita de justiça:
3. Ingratidão
O foco desproporcional no que é negativo é um dos vieses cognitivos mais reconhecidos da humanidade, afinal, de um ponto de vista de sobrevivência, não faz muito sentido dedicar a mesma energia pensando tanto no que já está bom quanto nos problemas a serem resolvidos. O lado ruim disso é que se torna fácil ignorar por completo tudo o que há de bom, e pensar somente no que é faltante.
Obviamente, parasitas de justiça não são pessoas felizes, mas o que garante sua infelicidade é a incapacidade de atribuir a ela suas causas reais. A mesma visão de mundo infantil que faz com que desconsiderem a responsabilidade do indivíduo também explica a ilusão que está na raiz de sua inveja e frustração intermináveis: eles acreditam que o mundo lhes deve felicidade, e que o fato de existirem é suficiente para que mereçam tudo o que existe de bom.
Essa premissa está implícita em sua ideologia, que coloca a igualdade acima de valores como a liberdade ou até mesmo a verdade. Ignoram o fato de que, graças à industrialização e ao crescimento econômico possibilitado pelo livre mercado que tanto abominam, hoje possuem mais conforto e segurança do que muitos reis do passado, e do que a imensa maioria da humanidade ao longo de toda a história. Preocupam-se apenas com o fato de que alguém possui mais do que eles hoje. Riqueza e bem-estar são vistos somente em termos relativos, e isso, para eles, justifica sua indignação: não podem conceber uma razão pela qual alguém tenha mais de algo desejável do que eles; esforço e mérito cedem lugar ao privilégio, e toda desigualdade é encarada como uma injustiça.
Seu desprezo pelo mérito alheio também explica a dificuldade de enxergar o valor no que foi construído ao seu redor: parasitas de justiça não têm experiência real em criar coisas, e não sabem se colocar no lugar daqueles que têm. É por isso que enxergam a revolução violenta como algo tão atraente, no lugar de melhorias incrementais nos sistemas que veem como imperfeitos. Decerto não é razoável supor que tudo o que foi construído por nossos antepassados deva ser mantido inalterado; porém, parasitas de justiça sequer se dão ao trabalho de tentar entender o que os motivou a criar as coisas da forma como são. Sua condescendência e generosidade interpretativa são reservadas apenas para culturas distantes, que não lhe afetam pessoalmente, ou para grupos eleitos oprimidos por critérios em última análise arbitrários ou anacrônicos. A destruição e os demais dogmas de sua ideologia lhe conferem propósito, porque sua única alternativa seria o niilismo completo.
Nem todo ativista que repete esse discurso é necessariamente um parasita de justiça; muitos apenas são suscetíveis à sua manipulação, e acabam servindo como um escudo para ativistas menos honestos. Também é necessário apontar que, embora a criação do conceito de “parasita de justiça” tenha sido motivada pelo comportamento de ativistas da extrema-esquerda, sobretudo em resposta aos protestos violentos que seguiram o assassinato de George Floyd e aqueles que os defendem, a direita não está isenta desse rótulo. Na verdade, a tendência tribal a criar narrativas de vitimização, a desumanizar grupos de pessoas vistos como “opressores” e a apagar o indivíduo está presente em toda ideologia coletivista.
O que motivou nazistas em sua empreitada contra judeus não foi uma súbita psicopatia que acometeu os alemães, e sim uma narrativa de vítima e opressor semelhante à que motiva socialistas revolucionários e ativistas pós-modernos. Seguindo a derrota humilhante na Primeira Guerra Mundial e a catastrófica crise econômica subsequente, não é surpreendente que tenham buscado culpados para direcionar sua raiva. Que fique claro: não existe diferença significativa entre o ódio tribal de nazistas por judeus, o ódio de grupos comunistas revolucionários como Antifa e o ódio que motiva algumas feministas radicais a dizerem “matem todos os homens”. A única diferença é o alvo escolhido, e o poder que cada grupo obteve para realizar seu desejo.
Uma defesa comum do parasitismo de justiça atual é que, apesar de todos os seus vícios intelectuais, ele ainda não causou o mesmo estrago que foi causado pelas outras ideologias citadas. No entanto, não é a oportunidade ou escala de aplicação de um erro intelectual e moral que fazem dele um erro: são considerações anteriores à luz de critérios racionais. Não é necessário esperar um estrago para reconhecê-lo como erro.