Virtudes e Obrigações Liberais na Vida Privada
Críticos do liberalismo dizem que a defesa de liberdades individuais é insuficiente para uma vida virtuosa, que é um cavalo que se monta sem saber para onde vai. Neste artigo, o filósofo Matheus Silva responde a esses críticos, mostrando que defender
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Na acepção usual do termo, um cidadão é uma pessoa que é reconhecida como membro de uma comunidade política soberana, como um país. Os filósofos contemporâneos tendem a recusar essa definição, pois entendem que alguém só pode ser um cidadão se for um membro da sociedade democrática. Afinal, eles argumentam, as pessoas que são governadas por monarquias e ditaduras militares são súditos e não cidadãos.[ref]MILL, J. S. (1859) Sobre a Liberdade de Pensamento e Discussão. In: Sobre a Liberdade. Trad. de Pedro Madeira. Lisboa: Edições 70, 2006.[/ref]
Uma virtude é um traço de caráter ou disposição de agir do modo apropriado nas circunstâncias moralmente relevantes. Assim, uma virtude cívica é um traço de caráter ou disposição de agir de modo a promover o bem público.[ref]BLANKEN, B. D. B. The Good Liberal Citizen - Why Citizens can be both Free and Virtuous. MSc Thesis Political Science, 2012.[/ref] O cidadão virtuoso, portanto, é aquele que contribui para o bem da sociedade democrática. Assim, saber o que é a virtude cívica é fundamental para determinar como podemos contribuir para o bem da sociedade democrática.
As democracias modernas se caracterizam pelo pluralismo de religiões, valores e práticas culturais. Por isso, dependem da tolerância, que é a não-interferência em crenças, ações ou práticas que alguém considera incorretas, mas ainda “toleráveis”, de modo que não sejam proibidas pelo Estado, grupos sociais ou indivíduos.[ref]FORST, R. Toleration. IN ZALTA, E. (Org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2017. Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/toleration/. Acesso em 10 de Junho de 2019.[/ref] Por exemplo, os cursos de humanidades toleram as pessoas de direita (se elas se mantiverem em silêncio sobre suas crenças políticas); as religiões majoritárias toleram as religiões minoritárias; alguns conservadores toleram os homossexuais, etc.
O liberalismo político
Essa tolerância é fundada no liberalismo político. O liberalismo é uma teoria filosófica centrada no indivíduo, que é tido como portador de direitos como a liberdade de expressão, a liberdade ideológica e a igualdade de tratamento. O liberalismo surgiu na Europa em resposta à intolerância das guerras religiosas nos séculos XV e XVI. Depois de inúmeras guerras, ambos protestantes e católicos decidiram que o Estado não deveria impor uma fé comum, e que a única base para o regime político era separar a Igreja do Estado. O liberalismo defende que devemos ampliar essa atitude de neutralidade do Estado em relação a outras áreas da vida social em que os cidadãos possuam diferentes concepções de vida. Entre os pais do liberalismo podemos incluir filósofos como John Locke, Montesquieu, John Stuart Mill, Herbert Spencer, Voltaire, Adam Smith e Immanuel Kant.
Os liberais dão especial importância à proteção dos indivíduos pelo Estado contra a tendência da sociedade de impor as opiniões da maioria sobre os seus membros. Uma pessoa deve ter a liberdade de fazer escolhas ainda que outras pessoas considerem tolas ou erradas,[ref]MILL, J. S. (1859) Sobre a Liberdade de Pensamento e Discussão. In: Sobre a Liberdade. Trad. de Pedro Madeira. Lisboa: Edições 70, 2006.[/ref] pois uma sociedade não pode ser considerada livre se os seus indivíduos não têm a liberdade para escolher projetos de vida impopulares. Os liberais argumentam que a única justificativa para interferir na liberdade de um indivíduo é para prevenir o dano a outros.
As virtudes cívicas para o liberalismo envolvem todos os traços de caráter que devemos esperar de um cidadão que promove o bem em uma sociedade plural.[ref]STRIKER, K. Perfectionism and neutrality: a response to Hostetler. Philosophy of Education Society Yearbook, 1999.[/ref] A principal virtude liberal é a tolerância, que é necessária para respeitar concepções de bem muito distintas das suas. Ora, quem age de modo dogmático e deseja silenciar outra opinião quase sempre parte do pressuposto de que não pode estar enganado sobre alguma crença importante. Por isso, o cidadão virtuoso deve também estar ciente da sua própria falibilidade epistêmica. Nos enganamos muitas vezes quando pensamos que uma ideia é falsa.
Mas não podemos reconhecer nossa própria falibilidade se não tivermos a capacidade de pensar de modo autônomo. Por isso, a autonomia é outra virtude liberal. Finalmente, esperamos do bom cidadão que ele tenha a capacidade de dar razões para as suas exigências políticas, que podem, pelo menos em princípio, persuadir pessoas de crenças distintas. Essa capacidade de justificar as próprias ideias só pode ser genuína enquanto um exercício de tolerância, pois necessita do contraste com as ideias que consideramos falsas. No cômputo geral, uma sociedade em que as pessoas têm ideias verdadeiras aceitas dogmaticamente é tão ruim quanto uma sociedade em que as pessoas têm ideias falsas.
As virtudes liberais andam juntas. Se temos a capacidade de justificar as nossas ideias, poderemos contrastá-las com ideias diferentes, e assim teremos a autonomia necessária para reconhecer que podemos estar errados, o que será fundamental para sermos tolerantes. Os vícios antiliberais também se apoiam mutuamente. O indivíduo que age sobre o pressuposto da certeza da infalibilidade geralmente é incapaz de justificar as suas ideias adequadamente, não tem autonomia intelectual, não consegue conceber que pode estar enganado sobre pontos vitais, e não aceita o contraste de pontos de vista alternativos que ele deseja silenciar.
Há várias teorias liberais e elas evoluem com o tempo
As justificativas das virtudes liberais, ou até mesmo a classificação de algumas dessas virtudes, podem variar de autor para autor. Liberais contemporâneos como John Rawls, Ronald Dworkin, Isaiah Berlin e Robert Nozick oferecem teorias muito particulares e distintas. De fato, há tantas vertentes de liberalismo quanto há grãos de areia debaixo do sol. Isso é perfeitamente normal, pois a filosofia política é essencialmente especulativa. O que é relativamente incontroverso é que em qualquer concepção liberal os direitos políticos e a liberdade individual são direitos fundamentais. Certamente seria estranho chamar de liberal uma postura que restrinja cada vez mais liberdades individuais em nome de boas consequências ou outros princípios.
Outro ponto importante é que teorias liberais se modificam e podem evoluir com o tempo. Locke é tido como um dos fundadores do movimento liberal, mas defendia a escravidão. Isso jamais seria aceito por um liberal nos dias de hoje. Isso precisa ser dito para evitar uma visão demasiado caricata do assunto.
O liberalismo é um ideal político e ele não é neutro
O liberalismo político não deve ser interpretado como uma tentativa de descrição empírica da realidade política, que é marcada por políticas de barganha e legislação tirana. Pelo contrário, ele é um ideal político que prescreve como a realidade deve ser. Um norte que deve ser reiterado e mantido vivo a cada geração diante da ameaça da tirania e do dogmatismo dos grupos. No nosso caso, ele ainda precisa ser adotado, senão importado de outros países como uma inovação cultural, uma nova maneira de conceber a sociedade. O Brasil nunca teve uma tradição liberal forte e não entende realmente quais são as suas implicações.
O liberalismo político não deve ser confundido com a indiferença absoluta a quaisquer concepções de bem, pois somente modos de vida que são compatíveis com os princípios mais básicos da sociedade democrática devem ser permitidos.
Isso não significa que seja uma boa ideia forçar os pais a matricularem as suas crianças em programas de educação liberal. Afinal de contas, a educação estatal tem um péssimo histórico de produzir virtude moral nos cidadãos, e o ensino dessas virtudes liberais pode ser cooptado por burocratas ignorantes e políticos oportunistas. A melhor forma de cultivar essas virtudes é pelo livre mercado de ideias na iniciativa privada.
Os problemas do liberalismo político
O liberalismo político é alvo de várias objeções. Por exemplo, ele enfrenta a crítica de disseminar um individualismo corrosivo que gera instabilidade política e social. Os seus críticos almejam alternativas de sociedades não-liberais, que são mantidas juntas por concepções compartilhadas de bem, como uma religião. Diferente dos indivíduos de sociedades liberais, argumentam os críticos, os membros dessas sociedades estão dispostos a fazer sacrifícios em função do que têm em comum. Mas a aceitação de princípios liberais não seria suficiente para manter uma sociedade plural junta. Afinal, mesmo uma sociedade liberal exige que os seus membros estejam dispostos a aceitar sacrifícios (p. ex., serviço militar), ter o interesse em questões públicas, e exercitar autocontrole em suas ações pessoais e exigências políticas.
Outra crítica é a acusação dos comunitaristas de que o exercício inveterado da liberdade individual de escolha poderá minar as formas de família e vida em comunidade que desenvolvem a capacidade de escolha das pessoas e as fornecem com opções significativas. O liberalismo seria auto-refutante, pois privilegiaria os direitos individuais mesmo quando isso mina as condições sociais em que indivíduos fazem escolhas livres valorosas. O comunitarista defende que aquilo que garante a coesão social é um sentido pré-liberal de identidade partilhada (p. ex. como membros de uma mesma nação). É esse sentimento de solidariedade que é anterior ao compromisso com o liberalismo e que explica a coesão social.
O liberalismo também é acusado de criar indivíduos apáticos, que não entendem as suas obrigações cívicas, não fazem as exigências políticas necessárias e não cobram a responsabilidade dos seus dirigentes políticos por seus erros ou promessas eleitorais. O resultado dessa apatia é nos tornarmos reféns de uma sociedade que não escolhemos e a formação de governantes corruptos.[ref]SANDEL, M. Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1996.[/ref] O liberalismo deveria exigir o envolvimento ativo de cidadãos informados para impedir a corrupção sistêmica, mas ele não faz isso.[ref]ETZIONI, A. The Spirit of Community. New York: Crown Publishers, 1993.[/ref]
Ideias ultrapassadas sobre a distinção público-privado
No cerne da discussão estão ideias antigas, mas ainda muito difundidas sobre a distinção entre público e privado. Essas ideias motivam diagnósticos equivocados sobre as nossas obrigações cívicas em uma sociedade liberal. É usual pensar que a vida privada consiste na totalidade dos relacionamentos pessoais, vida familiar, interesses, estilos de vida e atividades que são distintas da vida pública. Em contraste, a vida pública é estendida sobre todos os aspectos da vida social compartilhados em comum, incluindo a vida profissional.
Uma consequência inevitável dessa distinção é que a vida pública deve competir por espaço com a vida privada. Quando a vida privada e a vida pública são colocadas como rivais, alguns escolhem abdicar dos seus interesses privados em nome da coisa pública (p. ex. os ativistas). Essa escolha seria apoiada por uma concepção na qual o privado seria importante apenas na medida em que forneça as condições para participar na esfera pública, entendida como a participação política.
Para a maioria essa opção é simplesmente intolerável. Não só consideramos a vida privada como a principal fonte de realização, como uma concepção liberal tende a encarar tudo o que não é privado como invasivo. A linha de raciocínio é que se a vida privada é mais importante para nós do que a vida pública, tanto pior para a coisa pública. Consequentemente, a maioria abandona por completo a coisa pública e se volta para um cercadinho próprio. A vida pública é jogada às traças em nome da vida privada.
O espaço público como o fluxo informacional
Essa concepção da vida privada geralmente vem acompanhada de uma noção de privacidade entendida em termos de espaços físicos, como uma casa. Daí a célebre frase de Edward Coke: “A casa de um homem é o seu castelo”. Mas como Thompson[ref]THOMPSON, J. B. Shifting Boundaries of Public and Private Life. Theory, Culture & Society, 2011, Vol. 28, n. 4: 49-70, p. 62.[/ref] observa, essa noção é equivocada, pois os espaços físicos são parte do que cria a esfera privada, mas não a definem.
Isso fica claro no simples ato de acessar uma rede social a partir do conforto de sua casa. Em questão de minutos apresentamos informação pessoal para milhares ou até mesmo milhões de pessoas. Em que sentido o indivíduo nesse caso está situado na esfera privada? Do fato de acessar a internet do espaço privado de sua casa não implica que você não está participando em uma arena pública de disseminação de informação. Por isso o privado não é mero espaço físico.[ref]THOMPSON, J. B. Shifting Boundaries of Public and Private Life. Theory, Culture & Society, 2011, Vol. 28, n. 4: 49-70, p. 63.[/ref]
O privado deve ser entendido como o reino da informação sobre a qual o indivíduo acredita poder exercer controle, a despeito da localização física da informação e do indivíduo. Já a esfera pública deve ser entendida como um espaço complexo de fluxo informacional onde ser público significa ser visível neste espaço, ser capaz de ser visto e ouvido por outros.[ref]THOMPSON, J. B. Shifting Boundaries of Public and Private Life. Theory, Culture & Society, 2011, Vol. 28, n. 4: 49-70, p. 63.[/ref]
As novas tecnologias de informação alteraram a natureza do público, do privado e suas relações, pois elas afetam a habilidade de controlar ou obter acesso à informação. Isso inclui tecnologias de vigilância que dão a outros a habilidade de invadir de maneira disfarçada na vida alheia e novas tecnologias de comunicação que permitem que indivíduos compartilhem informação sobre eles mesmos para estranhos. Indivíduos que compartilham informação nesses contextos têm menos controle do que pensam.[ref]THOMPSON, J. B. Shifting Boundaries of Public and Private Life. Theory, Culture & Society, 2011, Vol. 28, n. 4: 49-70, p. 62.[/ref] Será que a nossa vida privada se tornou pública?
Roessler[ref]ROSSLER, B. The Value of Privacy, trans. R.D.V. Glasgow. Cambridge: Polity, 2005.[/ref] observa que podemos distinguir pelo menos três dimensões conceituais de privacidade: a privacidade informacional envolve o controle sobre a informação acerca de nós mesmos e o direito de protegê-lo de acesso indesejado de terceiros; a privacidade decisional envolve o controle sobre nossas decisões e ações, e o desejo de protegê-los de interferência indesejada; e a privacidade espacial, que é o controle sobre nossos próprios espaços e o direito de protegê-los contra a intrusão de outros.
Repare que o direito à privacidade em suas diferentes dimensões (informacional, decisional, espacial) é indistinguível do direito às liberdades individuais. Por isso os direitos em uma sociedade liberal estão atrelados ao direito à privacidade. O direito à liberdade de expressão diz respeito ao acesso ao fluxo informacional do espaço “público” e o direito ao voto secreto diz respeito à privacidade do pensamento sobre candidatos a cargos eletivos. Inversamente, as obrigações e normas que visam satisfazer a preservação da privacidade serão também obrigações em uma sociedade liberal. Isso mostra que para compreendermos as virtudes e obrigações liberais devemos pensar em termos informacionais.
As normas e as obrigações da vida privada
Entre as queixas do declínio das normas de civilidade, uma acusação comum é de que a vida privada corrompeu a vida pública.[ref]SENNETT, R. The Fall of Public Man. Cambridge: Cambridge University Press. Chicago, 1977.[/ref] Mas essa acusação é inadequada. O que aparenta ser um declínio dos padrões de civilidade pública é na realidade um declínio de normas privadas que servem para regular tanto as relações íntimas como as sociais. Como as normas da vida privada são fundamentais para a vida pública, a sua violação reflete de modo negativo no público. Mas para entender isso devemos entender melhor o que é privacidade e quais são as suas normas.
Helen Nissenbaum[ref]NISSENBAUM, H. Privacy as Contextual Integrity. Washington Law Review, v. 79, n. 1: 119-58, 2004.[/ref][ref]NISSENBAUM, H. Privacy in Context: Technology, Policy, and the Integrity of Social Life. Stanford, CA: Stanford University Press, 2010.[/ref] explica que o espaço privado varia de acordo com as esferas ou contextos diferentes em que os indivíduos vivem suas vidas. Em cada uma dessas esferas há normas específicas que governam o que é apropriado em termos de como a informação é compartilhada.[ref]NISSENBAUM, H. Privacy as Contextual Integrity. Washington Law Review, v. 79, n. 1: 119-58, 2004, p. 137.[/ref] Nissenbaum distingue entre normas de adequação e normas de distribuição de informação. Por exemplo, quando fazemos uma consulta, é apropriado compartilhar detalhes sobre nossa condição médica com nosso médico, mas não esperamos que o médico publique as informações dadas pelo paciente sem consentimento. Quando ambas as normas são mantidas, temos integridade contextual. [ref]NISSENBAUM, H. Privacy as Contextual Integrity. Washington Law Review, v. 79, n. 1: 119-58, 2004, p. 138.[/ref]
O ponto é que diferentes relações (p. ex., entre empregador e empregado, padre e fiel, marido e esposa, pai e filho, etc.) envolvem uma concepção implícita do comportamento apropriado e do grau de conhecimento que é apropriado ter.[ref]RACHELS, J. Why Privacy Is Important, in Philosophical Dimensions of Privacy: An Anthology. (Org.) Ferdinand David Schoeman, 1984, p. 290.[/ref] Mas as normas que valem em um contexto não valem em outros. Por exemplo, as normas de adequação e controle informacional são mais abertas no contexto da amizade, menos em uma sala de aula, e ainda menos em um tribunal.
O que é mais importante aqui é que não há nenhum lugar que não seja governado por normas informacionais. Podemos estar em uma rua, uma praça, um supermercado ou um jogo de futebol, e diferentes normas serão assumidas. Nos movemos de uma esfera para outra quando estamos em casa, vamos trabalhar, visitamos amigos, vamos ao banco, passamos no cartório, vamos à missa, etc., mas cada esfera envolve um conjunto distinto de normas, que governa os seus vários aspectos e práticas. [ref]NISSENBAUM, H. Privacy as Contextual Integrity. Washington Law Review, v. 79, n. 1: 119-58, 2004, p. 137.[/ref]
Algumas dessas normas nós identificamos instintivamente e as inferimos do contexto, enquanto outras são assimiladas por instruções explícitas, mas todas podem ser reconhecidas por uma análise pragmática das nossas interações. Mais do que isso, elas superam a distinção público-privado e perpassam diferentes modos de vida e concepções de bem, assim fornecendo a unidade exigida para garantir estabilidade social.
Pensamos na vida privada e na privacidade como direitos que determinam os limites do Estado. Mas a vida privada também possui as suas normas de participação social que são responsáveis pela civilidade, o decoro e a razoabilidade. Portanto, a vida privada é uma precondição para a vida pública sem que isso afete a sua dinâmica. Se há alguma queda em civilidade ela deve ser rastreada na violação de normas privadas que também regulam relacionamentos sociais como relações íntimas, familiares, profissionais, incluindo aquelas entre um médico e um paciente, um professor e um aluno, e assim por diante. Pessoas de má conduta na vida pública raramente têm uma vida privada ilibada.
O exemplo das normas conversacionais
A civilidade, portanto, está diretamente associada à integridade contextual. As normas informacionais que garantem a integridade contextual, e assim a civilidade, tendem a ser reconhecidas de modo implícito. Isso fica evidente nas máximas que tendemos a reconhecer quando conversas têm uma finalidade puramente cognitiva. Nesses casos, partimos do pressuposto de que uma conversa é um esforço cooperativo e racional no qual os falantes reconhecem um objetivo comum que determina como a conversação deve ser conduzida de maneira eficaz. Essa expectativa tácita de cooperação exige que sejamos informativos, tenhamos evidências para as nossas asserções, sejamos pertinentes e claros.[ref]GRICE, P. (1975). Lógica e Conversação. Crítica. Tradução de Matheus Silva. Disponível em: https://criticanarede.com/lds_conversas.html. Acesso em: 10 de Novembro de 2016.[/ref]
Mas, ainda que conversas possam ser entendidas como trocas de informação governadas pelo princípio cooperativos, em alguns casos somos menos eficientes propositadamente devido a objetivos não-cognitivos, incluindo a evocação de fortes sentimentos (p. ex. na poesia) e a polidez. No caso da polidez adotamos estratégias comunicativas para preservar ou promover harmonia social.[ref]RILEY, K, Conversational Implicature and Unstated Meaning in Professional Communication. Technical Communication Quarterly, 15, 1988, p. 94-104.[/ref] Por exemplo, ao oferecer uma bebida, é comum perguntar algo como “Deseja tomar alguma coisa?”, pois isso está em acordo com a máxima da generosidade, i.e., dá muito valor às necessidades de outras pessoas.[ref]LEECH, G. Principles of Pragmatics, London, Longman, 1983.[/ref]
Os falantes também adotam normas de polidez por meio do discurso não-literal para evitar atritos sociais em potencial. O ponto de falar de modo indireto é fornecer um amortecedor verbal que suaviza o impacto de uma mensagem que o ouvinte não quer ouvir. O pedido “Você pode me passar o sal?” é despropositado literalmente, mas se justifica por ser um imperativo formulado de modo não-literal para garantir que nenhum atrito ocorra.
O que é inegável é que: (1) não temos qualquer dificuldade para reconhecer de modo implícito várias normas em cada contexto; (2) essas normas são informacionais em caráter e, deste modo, associadas às normas de privacidade; (3) essas normas geram obrigações e direitos que podem ser traduzidas em termos de liberdades individuais; (4) essas normas são relevantes para a civilidade da vida pública, mas não precisam ser impostas de fora; (5) essas normas são consensuais de modo que não contam como imposições de um grupo sobre o restante da população; (6) a falta de zelo com essas normas explica o declínio da vida pública, que apenas reflete o declínio da vida privada.
Uma possível objeção é de que não devemos confundir virtudes cívicas com obrigações cívicas, pois as últimas, mas não as primeiras, devem ser forçadas de algum modo sobre os cidadãos. Além disso, se todas as normas privadas forem obrigações, a sua fiscalização seria simplesmente impraticável.
A resposta para essa crítica é que a noção de virtude cívica é despropositada se não for entendida como uma obrigação cívica. Se uma virtude cívica for apenas um ideal opcional, os traços de caráter que são indispensáveis para uma sociedade democrática saudável são também opcionais. Portanto, devemos admitir que uma sociedade democrática saudável é opcional, o que é uma posição implausível.
Já o argumento de que todas as obrigações cívicas devem ser legisladas pelo Estado é circular, pois pressupõe sem argumento o que deveria demonstrar. Não só é implausível pensar que uma obrigação só tem legitimidade quando ela é fiscalizada pelo Estado, como é até mesmo preocupante pensar desse modo, pois as normas mais importantes são todas privadas e geradas de modo espontâneo.
Nossas obrigações cívicas
As virtudes cívicas são obrigações cívicas, pois são essenciais para a satisfação dos nossos direitos políticos. Se você é intolerante, eu não posso desfrutar do meu modo de vida, e vice-versa. E as obrigações cívicas em uma sociedade liberal são tão diversas quanto as normas implícitas em cada contexto. Não só devemos ser tolerantes, como também devemos ser bons pais, bons amigos, bons alunos, bons vizinhos, bons parceiros, etc.
As obrigações cívicas também envolvem as nossas profissões. Na sociedade contemporânea, a ocupação profissional é muitas vezes encarada como um meio de renda, um meio para outros elementos da vida privada. Porém, não é possível que a sociedade democrática seja saudável se não tivermos profissionais dedicados (professores, médicos, engenheiros, legisladores, etc.) capazes de contribuir para o bem comum.[ref]GALSTON, W. Pluralism and Civic Virtue. Social Theory and Practice, v. 33, n. 4, 2007, p. 630-631.[/ref]
O profissionalismo é incompatível com a corrupção. Isso nos fornece uma resposta liberal para o problema da corrupção, pois a corrupção dos governantes não é nada além da falta de interesse por sua profissão em função do excesso de importância dado aos outros elementos da sua vida privada. Nossos governantes apenas refletem o cidadão comum, que encara a sua profissão como uma chatice. Para mudar nossos governantes, devemos mudar as expectativas do cidadão comum.
Em resposta à crítica de que o liberalismo torna as pessoas apáticas, devemos observar que as pessoas devem ser engajadas desde que isso não as impossibilite de cumprir suas demais normas cívicas. O engajamento que corrompe o indivíduo, cria divisões familiares e compromete o desempenho nas diferentes esferas é pior do que a apatia política. De fato, em muitos casos, o que é confundido com apatia é a maior importância dada a outras atividades.
Um dos fatores responsáveis pelo desenvolvimento e riqueza é uma consequência natural da divisão de trabalho. É preciso que médicos, engenheiros, arquitetos, mecânicos, psicólogos, cientistas da computação, físicos, professores de línguas e padeiros tenham competências específicas para que todos possamos nos beneficiar da produção do seu trabalho. Contudo, isso só é possível se cada indivíduo se dedicar à sua profissão, dando menos importância ao resto.
Consequentemente, a maioria das pessoas não terá as competências necessárias para votar corretamente ou ter uma participação ativa na política. Para tanto é preciso que elas possuam uma compreensão sólida de economia, ciência política e das instituições sociais relevantes. Por isso, a maioria contribuirá mais para o bem da sociedade com a abstenção do engajamento político, sem voto obrigatório, ou ao menos com mais votos brancos e nulos.
Assim, as obrigações cívicas são compatíveis com a nossa autonomia e projetos de vida próprios, o que também inclui laços comunitários que são importantes para a nossa identidade. Mas esses laços comunitários são em última instância fundados no indivíduo e seus projetos pessoais, e não o contrário. As comunidades que são mais importantes para nós em nossas vidas privadas (família, trabalho, círculo de amizades, etc.) têm impacto direto na sociedade como um todo. Assim como o público não pode florescer sem o privado, o privado precisa do público. Há uma reciprocidade natural entre o público e o privado.
Assim, obtemos uma concepção da vida privada que corrige as deficiências do liberalismo político. Ela fornece um ponto de partida focado no indivíduo que não deixa de fora os laços comunitários, é compatível com diferentes concepções de vida e ainda une o indivíduo e o bem público.