Comunismo aos 100 anos: cartas pouco conhecidas de Lênin
Por Neven Sesardić*
Recordemos nesta ocasião três episódios poucos conhecidos do começo do comunismo soviético que nos dizem algo importante sobre a "Revolução de Outubro" e o seu líder, Lênin.
(1) Carta de Lênin a Molotov
(março de 1922)
É precisamente agora, e só agora, quando nas regiões em que passam fome as pessoas estão comendo carne humana, e centenas, se não milhares, de corpos estão espalhados pelas estradas, que nós podemos (e portanto devemos) executar o confisco de bens de valor das igrejas com a energia mais selvagem e impiedosa, não titubeando em esmagar qualquer resistência.1
(2) Carta de Lênin aos bolcheviques da cidade de Penza (agosto de 1918)
Camaradas! A insurreição de cinco distritos de kulaks [camponeses mais tarde mortos por Stálin por serem "último reduto da burguesia"] deve ser suprimida sem piedade. Os interesses de toda a revolução exigem isso porque 'a última batalha decisiva' com os kulaks está ocorrendo agora em todo lugar. Devemos fazê-los de exemplo.
1. Enforquem (e certifiquem-se de que o enforcamento ocorra à vista de todos) no mínimo 100 kulaks conhecidos, homens ricos, sanguessugas.
2. Publiquem os seus nomes.
3. Tomem todos os grãos deles.
4. Escolham reféns de acordo com o telegrama de ontem. Façam-no de tal modo que por centenas de quilômetros em volta as pessoas possam ver, tremer, saber e gritar: eles estão estrangulando e estrangularão até a morte os kulaks sanguessugas.
Recibo e implementação do telégrafo.
Att.,
Lênin[P.S.:] Encontrem algumas pessoas bem duras.2
(3) Os navios dos filósofos (setembro e novembro de 1922)
Surpreendo-me com frequência ao ver que muitos dos meus colegas filósofos nunca ouviram falar nos “navios dos filósofos”.
O que aconteceu? Em 1922, Lênin em pessoa ordenou a deportação de quase duzentos filósofos e outros acadêmicos russos que eram considerados oponentes do regime comunista. Primeiro eles foram presos pela polícia secreta e então transportados à força para a Alemanha em dois navios.
O “passageiro” mais proeminente era o famoso filósofo Nikolai Berdyaev, que admitiu livremente ao oficial que lhe deu voz de prisão que ele era um oponente ideológico do comunismo. Ele foi primeiro interrogado em 1920 pelo infame Felix Dzerzhinsky, líder da Cheka [polícia secreta]. Temos o relato do próprio Berdyaev sobre a “conversa”:
Do lado esquerdo, perto da escrivaninha, estava uma pessoa que eu não conhecia, com uniforme militar marcado com uma estrela vermelha. Era um homem loiro com uma barba pontuda desgrenhada, com olhos cinzentos, embaçados, de melancolia; havia algo de suave na sua aparência e gestos — um certo refinamento e cortesia. Ele pediu a mim que me sentasse e disse: ‘Meu nome é Dzerzhinsky.’ Esse era o nome da pessoa que criou a Cheka, uma palavra associada a sangue e perante a qual toda a Rússia tremia. Entre os muitos prisioneiros, eu fui o único que Dzerzhinsky questionou pessoalmente...
Uma das principais características do meu caráter é que, durante momentos calamitosos e perigosos da minha vida, jamais me senti sobrecarregado ou tive o menor medo; pelo contrário, sinto-me inclinado a me erguer e ir à ofensiva. É o efeito provável da minha herança militar. Decidi não defender a mim mesmo durante o interrogatório, mas atacar, mudando a conversa inteiramente para a esfera ideológica. Eu disse a Dzerzhinsky: ‘Mantenha em mente que a minha dignidade como pensador e escritor exige que eu fale francamente.’ A isso Dzerzhinsky respondeu: ‘É o que esperamos de você.’ E então prossegui com meu ataque e falei por cerca de 45 minutos e dei uma palestra inteira em defesa da minha oposição religiosa, filosófica e moral ao comunismo.3
Berdyaev presumiu, provavelmente corretamente, que essa conversa foi o que levou à sua deportação.
Outro filósofo expulso foi Nikolai Lossky. Como uma curiosidade, uma das estudantes para quem ele lecionou na Universidade de Petrogrado tornou-se bem famosa mais tarde. Era Ayn Rand, que se tornou uma das defensoras mais ousadas do capitalismo. Imagine uma conversa entre ela e Dzerzhinsky! Outro fato interessante sobre Lossky: se me lembro bem, seu livro sobre lógica estava na lista de leitura do meu curso de lógica quando eu era um estudante na Universidade de Zagreb. O professor do curso era um marxista apaixonado e, ironicamente, um grande admirador de Lênin. Ninguém nos contou sobre os navios dos filósofos na época.
P.S.: Acabei de me lembrar (como poderia esquecer!) que Lênin também estava na lista de leitura para lógica. (Seus Cadernos Filosóficos eram considerados relevantes por causa da discussão que Lênin fez da lógica de Hegel.) Bons e velhos tempos.
*Neven Sesardić (1949-) é um filósofo croata conhecido por sua obra que trata de temas acadêmicos técnicos como a herdabilidade (vide Making Sense of Heritability, Cambridge University Press 2005) e temas polêmicos associados, como raça e QI. No começo de sua carreira, Sesardić enfrentou o consenso de intelectuais marxistas na antiga Iugoslávia. De meados dos anos 1970 ao tempo da queda do muro de Berlim, lecionou na Universidade de Zagreb e outras instituições. Nos anos 1990 passou também por universidades na França, Estados Unidos, Japão e Inglaterra. No novo milênio se estabeleceu na Universidade de Lingnan, em Hong Kong, até se aposentar em 2015.
Sheila Fitzpatrick. The Russian Revolution. Oxford University Press. 2017.
Robert Service. Lenin: A Biography. Harvard University Press. 2000.
Vladimir K. Kantor. Berdyaev on Dostoevsky: Theodicy and Freedom. Russian Studies in Philosophy, vol. 53, no. 4, 2015, pp. 1–14.