O estudo de falácias não te tornará mais crítico
O pensamento crítico é comumente associado com a habilidade de justificar de modo apropriado nossas crenças e realizar inferências corretas a partir delas. O objetivo de um curso de pensamento crítico é ensinar o aluno a pensar criticamente por meio de taxonomias de falácias. Mas os cursos de pensamento crítico e suas taxonomias não são baseados em uma teoria sólida, sendo por isso superficiais demais para servirem de critério na argumentação.
Na realidade, tais taxonomias são utilizadas até mesmo como ferramentas de doutrinação do pensamento politicamente correto; e, como se não bastassem esses problemas, também ignoram evidências da ciência cognitiva que mostram que o pensamento não é uma habilidade genérica que pode ser adquirida e utilizada a despeito do contexto. Eu espero convencer o leitor de que o uso de falácias evidencia precisamente a ausência do pensamento crítico que ele deveria fomentar.
As taxonomias de falácias e suas limitações
Não há coisa alguma que possa ter o nome de uma classificação dos modos como os homens chegam a um erro; e é muito duvidoso que possa haver alguma.
Augustus De Morgan
Há poucas coisas mais desonrosas do que a má influência sobre os jovens.
Thomas Sowell
Um argumento é uma tentativa de convencer alguém acerca da verdade de uma afirmação (a conclusão), a partir da suposição de uma ou mais afirmações (as premissas). Um bom argumento tem de satisfazer várias condições. Se for um argumento dedutivo, ele deve ser válido (é impossível que ele tenha premissas verdadeiras e conclusão falsa), sólido (as premissas e a conclusão têm de ser verdadeiras), pertinente (as premissas têm de ser relevantes para a conclusão) e plausível (as premissas devem ser mais plausíveis do que a conclusão). Um argumento não-dedutivo deve satisfazer as mesmas condições, com a diferença que o seu objetivo é ser forte, não válido. Um argumento é forte quando é improvável, mas não impossível, que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Um argumento é bom ou convincente quando satisfaz todas as condições mencionadas acima.
Um argumento é uma falácia quando ele parece convincente para algumas pessoas, mas se revela inadequado em uma análise mais rigorosa. O argumento pode falhar em ser convincente por razões diversas. Uma ou mais premissas do argumento podem se revelar falsas, o argumento pode aparentar ser válido (ou forte) sem sê-lo, as premissas podem não ser pertinentes para a conclusão, e as premissas podem ser tão plausíveis quanto a conclusão.
Os manuais de lógica e os cursos de pensamento crítico classificam e identificam os diferentes tipos de falácias. Cada falácia recebe um nome próprio e é cuidadosamente classificada em um subgrupo, com exemplos individuais. Tudo é meticulosamente elaborado de maneira a veicular uma aparência de cientificidade e impessoalidade. As falácias são geralmente divididas em formais e informais. Uma falácia é formal quando ela parece convincente em função da sua forma, e informal quando ela parece convincente em função do conteúdo das premissas e da conclusão. Um dos sites mais tradicionais sobre o tópico, o Fallacy Files, subdivide as falácias formais em 5 subgrupos com 27 tipos distintos, e as falácias informais em 6 subgrupos, totalizando 47 tipos. Outros autores são ainda mais prolíficos. Por exemplo, Robert Gula, em Nonsense: A Handbook of Logical Fallacies, classifica o impressionante número de 170 (!) falácias.[ref]Outra fonte que demonstra a profusão de taxonomias é a seleção da bibliografia sobre o assunto de Hansen & Fioret (2016) com 41 páginas.[/ref]
Um tipo de falácia é o declive escorregadio, também conhecida como falácia da derrapagem. Esse argumento é falacioso, pois tenta mostrar que de uma afirmação se segue uma cadeia de consequências inaceitáveis, quando, na verdade, pelo menos um dos passos de raciocínio que sustentam essa cadeia é falso ou duvidoso. Um exemplo do guia de falácias do Stephen Downes é: “Se aprovarmos leis contra armas automáticas, não demorará muito até aprovarmos leis contra todas as armas, e então começaremos a restringir todos os nossos direitos”.[ref](DOWNES, 1995).[/ref]
Outro tipo de falácia é a pergunta complexa. Essa falácia ocorre quando tópicos de relação duvidosa são tratados como sendo associados. O objetivo desse tipo de falácia seria forçar o interlocutor a aceitar ou rejeitar duas opções, sendo que é possível escolher uma opção e rejeitar a outra. Stephen Downes ilustra essa falácia com o seguinte exemplo: “Apoia a liberdade e o direito de andar armado?”.[ref](DOWNES, 1995).[/ref] Eu poderia citar outros tipos e exemplos de falácias, mas isso seria um exercício entediante. O leitor pode checar por si mesmo inúmeros exemplos em textos disponíveis pela internet.
A expectativa no ensino de falácias é a de treinar os seus alunos em uma técnica que visa tornar automática uma parte substancial da argumentação. A promessa é que o aluno que se torne proficiente no pensamento crítico será capaz de detectar falácias de modo instantâneo e descartá-las sumariamente. Não é preciso entrar no mérito da questão se o argumento já foi descartado previamente por especialistas da argumentação.
O curioso é que o uso de taxonomias de falácias tende a ignorar as conclusões de alguns dos próprios especialistas no assunto, que mantêm que devemos evitar a tentação de rejeitar sumariamente argumentos que não aceitamos como falácias. A razão é a seguinte: se falácias são tipos de argumentos que são comprovadamente inadequados, então eles possuem aplicação limitada na realidade, mas, se nossas definições de falácias são sofisticadas o bastante para capturar complexidades da vida real, elas não serão úteis o bastante para separar argumentos bons de ruins.[ref]Veja BOUDRY, PAGLIERI & PIGLIUCCI (2015, p. 446).[/ref]
Para entender como esses autores chegaram a essa conclusão, considere o seguinte exemplo de argumento supostamente falacioso:
Premissa. A Bíblia Sagrada afirma que Deus existe.
Conclusão. Logo, Deus existe.
Este argumento seria falacioso, pois a premissa não será convincente para alguém que discorda da conclusão. Afinal, a conclusão apenas repete em poucas palavras algo que foi dito na premissa. Argumentos desse tipo são chamados de petições de princípio (petitio principii) ou simplesmente argumentos circulares.
Repare, contudo, que esse diagnóstico é superficial, pois o argumento provavelmente assume outras premissas de fundo que não foram explicitadas, como a de que podemos saber certas verdades importantes por testemunho ou de que a Bíblia pode ser uma fonte de autoridade. O interlocutor pode não se deixar convencer pelas premissas de fundo ou simplesmente ignorá-las, mas isso coloca em dúvida o suposto diagnóstico automático de argumentação. Na pior das hipóteses, teremos de considerar se devemos aceitar crenças religiosas por testemunho, mas isso é uma questão controversa que está em aberto em filosofia da religião.
Os guias de falácias, portanto, não detectam estruturas argumentativas complexas do mundo real, pois os argumentos reais vão envolver inúmeras premissas adicionais de todo tipo que não podem ser antecipadas de modo a priori.
Muito barulho por nada
O ensino do pensamento crítico tenta compensar a ausência de uma teoria sólida com uma variedade de artifícios, como o uso de taxonomias enormes.[ref](MASSEY, 1981, p. 489).[/ref] Mas não está claro que os argumentos falaciosos são distinguíveis de argumentos fracos em qualquer acepção conceitualmente relevante. Em alguns casos não parece que há sequer argumentos para serem considerados falácias. Por exemplo, ameaças, atitudes dogmáticas e até mesmo o uso de linguagem carregada de terminologia emotiva são considerados falácias.[ref](DOWDEN, 2020).[/ref] E mesmo alguns dos seus defensores reconhecem as suas inúmeras exceções.[ref](BROYLES, 1975; WOODS & WALTON, 1974; COPI, 1961, p. 76).[/ref]
A infinidade de tipos de falácia contrasta de modo gritante com a elegância de sistemas de lógica formal, como o cálculo de predicados de primeira ordem, que recebe um tratamento organizado e unificado. A razão para essa diferença é que uma teoria extremamente articulada e bem compreendida fundamenta a lógica de predicados, mas não o tratamento de falácias.[ref](MASSEY, 1981, p. 489).[/ref] Essa ausência de teoria de fundo é inevitável, pois se falácias sobre tópicos diferentes pressupõem explicações diferentes, elas possuem pouco ou nada em comum. Isso explica por que as taxonomias de falácias têm a aparência de uma miscelânea mesmo diante das tentativas de dividi-las em subgrupos em comum. Um amontoado de informação inarticulado não pode ser considerado conhecimento em qualquer acepção substancial.
As taxonomias de falácias são motivadas pela promessa de que podemos organizar uma compilação dos erros de raciocínio que resultam da ignorância conceitual de várias áreas. Isso é um empreendimento destinado ao fracasso desde o início, pois quem faz essas taxonomias não tem uma formação multidisciplinar em várias áreas para compreender as nuances da explicação subjacente a cada tipo de falácia. E mesmo se o autor fosse proficiente em outras áreas, o tratamento de falácias seria demasiado superficial para ter qualquer impacto significativo. O entendimento de cada viés cognitivo depende de uma teoria ou explicação sistemática de algum tópico associado, mas não podemos ensinar essa teoria com um exemplo de falácia. Nenhuma pessoa se tornará proficiente em uma área ao memorizar uma falácia.
Não surpreende, por conseguinte, que mesmo o grupo de falácias formais, que parece ser bem estabelecido em lógica formal, enfrenta muitas dificuldades. O maior problema é que não há nenhum procedimento de prova capaz de demonstrar que um argumento é inválido. O que temos são tentativas de interpretar um argumento de um modo que a forma lógica atribuída a ele seja inválida, mas disso não se segue que essa interpretação seja a única possível. Afinal, há sempre a possibilidade em aberto de que esse argumento poderia ser interpretado como tendo uma forma válida em um novo sistema de lógica.[ref](MASSEY, 1981, p. 494-496).[/ref] Considere o argumento:
Premissa. John fez uma caminhada ao longo do rio.
Conclusão. John fez uma caminhada.
Este argumento era tido como inválido apesar das nossas intuições em contrário, até que Davidson finalmente demonstrou como era possível traduzir esse argumento em uma forma válida usando lógica de predicados com quantificação sobre eventos.[ref](DAVIDSON, 1968).[/ref] Outro argumento é o seguinte:
Premissa. Tom, Dick, e Harry são parceiros.
Conclusão. Tom e Harry são parceiros.
Filósofos antes da década de 40 consideravam o argumento inválido, até que Leonard e Goodman forneceram uma interpretação usando lógica de predicados mereológica na qual o argumento tem uma forma válida.[ref](LEONARD & GOODMAN, 1940).[/ref]
Isso mostra que há uma assimetria no uso da lógica formal, pois temos métodos de prova para atestar a validade de argumentos[ref]Na realidade, até mesmo a utilidade e o significado deste elemento da lógica formal é duvidoso. Por exemplo, é argumentável que muitas das supostas formas argumentativas válidas, como o silogismo hipotético e o modus ponens, apenas expressam apenas propriedades metalógicas da noção de validade.[/ref] (e.g., tableaux semânticos), mas nenhum procedimento para estabelecer a invalidade de argumentos. Consequentemente, ainda que não encontremos nenhum sistema que permita essa interpretação, isso não atesta que o argumento original falhe em preservar a verdade.[ref](MASSEY, 1981, p. 494-497).[/ref] O único critério para estabelecer a invalidade de um argumento é manter que as premissas são verdadeiras e a conclusão é falsa, mas esse método é indiferente a procedimentos formais e depende do uso da intuição e análise individual.
Outra razão para duvidar da noção de falácias é que, se os exemplares de formas argumentativas associadas com falácias não são todos falácias, não podemos dizer que há falácias formais em qualquer acepção significativa do termo. Considere o seguinte exemplo que teria a forma da falácia de afirmar a consequente:
Premissa. Se algo foi criado por Deus, então tudo foi criado por Deus.
Premissa. Tudo foi criado por Deus.
Conclusão. Algo foi criado por Deus.
Esse argumento não é falacioso de todo.[ref](MASSEY, 1981, p. 492). Wreen (1997, p. 354) oferece um exemplo distinto de argumento intuitivamente válido com essa forma.[/ref] Esses contraexemplos são importantes, pois a suposição mais aceita é de que as falácias formais são melhor fundamentadas do que as informais. Se o grupo das falácias formais não é bem fundamentado, temos ainda mais razão para duvidar do grupo das falácias informais.
Taxonomias de falácias como ferramentas do politicamente correto
Num primeiro momento, eu interpretei as taxonomias de falácia como listas de vícios epistêmicos que devemos evitar. Isso forneceria uma solução para o caráter artificial das taxonomias: elas não servem de critério para separar argumentos bons de ruins na prática, pois é na realidade uma discussão sobre virtude epistêmica. Por exemplo, o argumento que envolve a Bíblia seria uma forma de alertar para o vício do dogmatismo. Mas com o tempo percebi que os guias de falácia são como manuais de conduta do politicamente correto que nos dizem quais argumentos devemos ignorar a partir do conteúdo. Repare que nos exemplos de falácia da derrapagem e pergunta complexa mencionados acima, posições políticas associadas à direita são tratadas como erros argumentativos. Consequentemente, o aluno é induzido a descartar automaticamente posições da direita como erros argumentativos.
O politicamente correto é a defesa de princípios de comportamento tidos como ideais por um grupo. Um movimento politicamente correto procura, entre outras coisas, eliminar da linguagem os termos que permitem a expressão de atitudes e valores que são considerados politicamente incorretos. Como os guias de falácia são tipicamente utilizados por autores de esquerda, eles funcionam como ferramentas do politicamente correto que favorecem crenças tipicamente associadas com pessoas de esquerda. O resultado prático disso é que a classificação de argumentos de direita como falácias induzem o aluno a descartar argumentos de direita como erros de raciocínio.
Para que fique claro que esse não é um caso isolado, vou apresentar alguns exemplos adicionais. Considere as falácias de apelo à força (argumentum ad baculum) como “É melhor admitir que a nova orientação da empresa seja a melhor — se pretende manter o emprego”. Isso seria uma falácia, pois a ameaça não teria relação com a verdade ou a falsidade da proposição defendida pelo autor do argumento. Ora, este diagnóstico tem vários problemas. Vamos considerar o argumento em maior detalhe apresentando a premissa antes da conclusão:
Premissa. Você pretende manter o seu emprego.
Conclusão. É melhor admitir que a nova orientação da empresa seja a melhor.
Está claro que uma premissa adicional está implícita e precisa ser identificada, a saber, de que se você não admitir a nova orientação da empresa, você não pretende manter o seu emprego, pois sabe que será demitido em resultado dessa escolha. O argumento então seria:
Premissa 1. Você pretende manter o seu emprego.
Premissa 2. Se não admitir que a nova orientação da empresa seja a melhor, você não pretende manter o seu emprego.
Conclusão. É melhor admitir que a nova orientação da empresa seja a melhor.
É questionável que o argumento nessa forma seja obviamente defeituoso em qualquer acepção trivial do termo. Isso indica que em termos práticos o ensino da falácia de apelo à força representa uma tentativa de conscientizar os alunos de lógica a serem rebeldes contra qualquer forma de coercitividade e ameaça de punição. É uma forma de doutrinar os alunos a serem idealistas sob o falso pressuposto de ensiná-los a pensar racionalmente. Será que o idealismo rebelde é equivalente à racionalidade? Eu duvido muito. Isso é particularmente prejudicial para alunos de filosofia, que terão de lidar em suas carreiras acadêmicas com todo tipo de capricho e autoritarismo de professores, orientadores e membros de banca que podem decidir os seus destinos em uma canetada por birra e dogmatismo.
Outro tipo de falácia carregada de orientações políticas é a já mencionada falácia do declive escorregadio. Vamos considerar novamente o exemplo citado: “Se aprovarmos leis contra armas automáticas, não demorará muito até aprovarmos leis contra todas as armas, e então começaremos a restringir todos os nossos direitos”. Isso seria um erro argumentativo. Portanto, quem defender posse de armas com esse argumento será visto como cometendo um erro e pode ser ignorado. Ora, isso é uma discussão política que envolve considerações empíricas e não pode ser descartado a priori como um erro de lógica.
Outro exemplo de pensamento politicamente correto vestido na roupagem do pensamento crítico é a falácia da pergunta complexa. Um exemplo ilustrativo é o mesmo mencionado anteriormente no texto: “Apoia a liberdade e o direito de andar armado?” Isso seria uma falácia, pois envolveria dois tópicos com relação duvidosa são conjugados e tratados como uma única proposição. Ora, esta é apenas uma afirmação que não está acompanhada de premissas. Para que ela possa ser considerada um argumento precisamos explicitar premissas adicionais. Vamos fazer a seguinte reconstrução:
Premissa 1. Se defender os direitos às liberdades individuais básicas, deve defender o direito de andar armado.
Premissa 2. Você defende os direitos às liberdades individuais básicas.
Conclusão. Logo, você deve defender o direito de andar armado.
O argumento adequadamente explicitado não é trivialmente tolo. A tentativa de classificar argumentos desse tipo como uma falácia parte do pressuposto de que a premissa 1 é uma falsidade, mas saber se o direito de andar armado é uma liberdade individual é precisamente o que está em discussão, não podendo ser descartada como um erro argumentativo de modo a priori.
A falácia de apelo ao medo (argumentum ad metum) envolveria justificar uma conclusão ao instilar o medo contra as alternativas. O exemplo utilizado por Whitey em Mastering Logical Fallacies é a proposta de Donald Trump de "banir muçulmanos dos Estados Unidos". O autor afirma que Trump apelou para o medo do eleitorado contra os muçulmanos utilizando uma linguagem demagógica para demonizá-los.[ref](WITHEY, 2016).[/ref] Note que um tópico político controverso é tratado como tendo uma resposta trivial: qualquer receio em relação a atentados terroristas de muçulmanos é infundado. Em nenhuma parte do texto o autor oferece qualquer argumento para sustentar essa afirmação.
A falácia ad populum envolve o apelo à opinião popular. No verbete de falácias da renomada Enciclopédia Stanford de Filosofia, Hansen oferece o seguinte exemplo: “Hoje em dia todo mundo (com exceção de você) tem um carro e sabe como dirigir. Assim, você também deve ter um carro e saber como dirigir”. O autor observa que as premissas fornecem somente um apoio escasso para as suas conclusões, pois o fato de algo ser amplamente praticado ou aceito não é evidência de que deve ser feito.[ref](HANSEN, 2020, seção 1). Gula (2002, p. 42-43) oferece um exemplo similar.[/ref] Esse diagnóstico, contudo, ignora várias considerações mais amplas que podem tornar o argumento convincente para alguém. Se o bem-estar de uma pessoa envolve adotar práticas de comportamento socialmente dominantes, então ter um carro é importante. De modo que o autor pressupõe sem argumentos que não devemos ser influenciados pela maioria. Isso é uma tentativa de veicular um princípio de comportamento de maneira sub-reptícia.
A falácia tu quoque (expressão traduzida do Latin “você também”) é usada para descartar uma hipótese com a acusação de hipocrisia ao invés de considerar o mérito da questão. Vleet, em Informal Logical Fallacies, oferece o seguinte exemplo: “Mãe: Você deve parar de fumar. Isso é prejudicial à sua saúde. Filha: Por que eu deveria escutá-la? Você começou a fumar quando tinha dezesseis anos!”. Isso seria uma falácia, pois a hipocrisia da mãe não refuta a sua afirmação.[ref](VLEET, 2011).[/ref] Mas será que refuta mesmo? Em metaética, a subárea da filosofia na qual os filósofos discutem a natureza da ética, uma posição sobre a motivação moral é o internismo. De acordo com essa tese, as convicções morais são intrinsicamente motivadoras, o que significa que tendemos a agir de acordo com nossas convicções morais. Ora, se aceitarmos o internismo, a filha está justificada em ignorar o conselho da mãe fumante por não ser realmente sincero, ainda que ele seja embasado em dados científicos.
Falácias causais ocorrem quando a relação entre causa e efeito estão invertidas. Stephen Downes dá o seguinte exemplo: “O aumento da AIDS foi provocado pela educação sexual”. Downes objeta que o processo inverso ocorreu: o aumento na formação de sexo foi causado pela propagação da AIDS.[ref](DOWNES, 1995).[/ref] Mas em nenhum lugar encontramos algum dado empírico para sustentar essa afirmação. A expectativa é que o leitor assuma a sua tese empírica como um dado bruto, sem questionamento. O autor se vale da autoridade de ser um especialista da argumentação para repetir ideias prontas do politicamente correto.
Um bastão político
O uso de guias de falácias desse modo funciona como um bastão político para bater na cabeça de indivíduos de direita. Qualquer tentativa de expressar uma crença ou valor contrário pode ser rudemente interrompida com uma exclamação: “Falácia!”. Como eles são apresentados como guias do pensamento correto e crítico, os alunos são induzidos a identificar a autonomia intelectual com atitudes dogmáticas de esquerda acerca de uma variedade de tópicos politicamente controversos e sensíveis.
É importante mencionar que as falácias que não envolvem componentes políticos também reforçam o caráter político dos exemplos mencionados. Considere a falácia do apostador. Ela ocorre quando há uma crença em certos resultados futuros em razão de uma sequência passada de eventos independentes. Por exemplo, no lançamento de uma moeda justa, o fato de terem ocorrido 9 caras seguidos pode induzir alguém a pensar que a probabilidade de obter coroa no próximo lançamento será maior. Isso é um erro de raciocínio, pois a probabilidade de obter coroa no próximo lançamento continuará a ser de 50%. Cada evento num lançamento de moeda é independente, e os resultados passados não importam. O objetivo ao apresentar este tipo de falácia é ensinar um fato básico sobre probabilidades.
Mas isso implica que qualquer falácia que contenha algum exemplo político faz uma associação implícita entre um fato conceitual básico e uma crença política que o autor considera errônea. Até certo ponto, o leitor é induzido a pensar que certas crenças políticas são tão equivocadas quanto erros básicos de probabilidade. Isso não é uma questão de amostragem, é um dado conceitual: qualquer exemplar de um tipo de falácia em questões políticas envolve um compromisso com a falsidade da posição política mencionada, ou pelo menos com exemplares que pretendem ser similares a argumentos recorrentes em embates públicos.
É importante observar que os manuais de falácias poderiam ser igualmente adaptados para condicionar alunos a recusar argumentos que contêm proposições associadas a teses de esquerda, pois o politicamente correto não é uma prerrogativa do pensamento de esquerda, ao contrário do que o seu uso corrente poderia sugerir. Essa é uma possibilidade remota dado o predomínio esmagador do pensamento de esquerda em áreas associadas com o pensamento crítico, como é o caso da filosofia. De qualquer modo, se o uso de guias de falácias fosse utilizado para veicular o pensamento politicamente correto de direita, ele seria igualmente desonesto e condenável.
Não existe racionalidade genérica
O ensino de taxonomias de falácias não só veicula pressupostos políticos controversos, como também transmite a ideia equivocada de que a argumentação em tópicos politicamente sensíveis e importantes pode ser automatizada por meio da memorização de uma lista de argumentos feita por terceiros. Esse tipo de corrupção do pensamento é estimulado por uma cultura cientificista, que tenta reduzir o conhecimento à ciência e confunde a ciência com a tecnologia de automação.
Não somos robôs e as controvérsias políticas não podem ser automatizadas por técnicas de memorização. Nada substitui a análise conceitual judiciosa e o conhecimento empírico que é específico a cada tópico. Os problemas políticos afetam as nossas vidas de uma maneira decisiva, mas são controversos e de difícil resolução. E é precisamente por isso que devemos argumentar com presteza e afinco ao invés de transferir a nossa compreensão para terceiros de maneira estereotipada. Essa visão indulgente e superficial do pensamento crítico também cria no aluno de pensamento crítico uma falsa sensação de segurança intelectual baseada na superficialidade da repetição acrítica de estereótipos.
Talvez a adesão ao automatismo do pensamento seja em parte motivada pela noção equivocada de que há uma racionalidade genérica, o pensamento crítico. Essa racionalidade genérica poderia ser obtida por qualquer um de maneira rápida e aplicada em qualquer disciplina. Mas as pesquisas nessa área atestam precisamente o contrário: não há qualquer tipo de competência racional transversal que possa ser ensinada a despeito do conteúdo.[ref]Veja MCPECK (1990, p. 11); GRONLUND et al (1998); SIMONS et al (2016); TRICOT & SWELLER (2014); HYLAND & JOHNSON (1998); WILLINGHAM (2008); MULNIX (2012, p. 470); SESARDIC (2017).[/ref]
Um exemplo que reforça essa conclusão envolve uma série de experimentos feitos com controladores de tráfego aéreo na década de 60. O trabalho de controlador de tráfego exige a memorização de grandes quantidades em contextos de pressão.[ref](YNTEMA & MUESER, 1962).[/ref] Os pesquisadores queriam determinar se os controladores tinham uma habilidade ampliada de monitorar várias coisas ao mesmo tempo, e se essa habilidade poderia ser aplicada em situações diferentes, como um conjunto de tarefas genéricas baseadas na memória com formas e cores. Os dados foram inequívocos: quando testados fora de sua área de expertise, os controles de tráfico aéreo não se saem melhor do que outros.
Essas descobertas sugerem que os controladores de tráfego não desenvolvem um conjunto de habilidades cognitivas gerais que poderiam ser usadas em outras áreas. O que depois foi confirmado e replicado várias vezes como um fenômeno mais geral: para ser bom em um domínio específico você precisa saber muito sobre um domínio específico e “quanto mais complexo é o domínio, mais importante é o conhecimento específico ao domínio”.[ref](ERICSSON & CHARNESS, 1994).[/ref] As competências envolvidas em cada disciplina são específicas e não podem ser transferidas. Em suma, não há uma racionalidade transversal, mas diferentes racionalidades em cada campo de especialidade.
Penso que a ilusão de entendimento é pior do que a ignorância bruta. Quem quer que tenha tido a infelicidade de ser doutrinado em cursos de pensamento crítico estaria melhor se nunca tivesse lido uma linha sobre o assunto. Esse ensino vem de um nicho criado por especialistas autointeressados que prometem mundos e fundos. O verdadeiro pensamento crítico está na independência intelectual, que recusa essas promessas exageradas e analisa minuciosamente o mérito da questão.
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