Recentemente, uma cena peculiar no X capturou minha atenção: um grupo de gorilas performava um ato sexual coletivo. A fêmea estava de bruços enquanto um macho se posicionava atrás dela; o outro macho, à frente, se masturbava. Sim, eram gorilas (!), não estrelas da indústria pornográfica (!). Essa cena sugere que pode ser um equívoco explicar a sexualidade humana como uma arbitrariedade da cultura. Não seria simplesmente coincidência demais outra espécie desenvolver um repertório de práticas sexuais parecidas com as nossas, sendo essa espécie não “tão cultural” quanto a gente?
Você deve estar pensando que simplesmente atribuir essa coincidência sexual à evolução ou à biologia não explica muita coisa. Essa seria uma crítica correta. A questão é que os mecanismos psicobiológicos que levam ao desenvolvimento dessa prática cultural em humanos e em gorilas podem ser os mesmos. Aparentemente, tem algo a ver com hierarquia. Fêmeas agradam (e se agradam também, por que não?) machos altos na hierarquia cedendo às suas esquisitices sexuais. Em troca, elas recebem proteção.
Em uma aldeia remota na Nigéria, o ritual de troca é mais tangível. Amina, uma jovem mulher, aguardava ansiosamente o colar de ouro que seu noivo havia escolhido como símbolo de compromisso. Para ela e sua família, o presente não era apenas um ornamento, mas uma promessa de proteção e estabilidade. O antropólogo Marcel Mauss, em seu trabalho sobre "a dádiva", argumenta que presentes como esse carregam um significado social que transcende seu valor material, criando redes de reciprocidade e obrigações mútuas. Para o noivo, o gesto era uma mensagem pública de sua capacidade de prover, acompanhada de uma expectativa implícita: fidelidade e intimidade em troca de generosidade. É como se cada presente fosse aumentando o investimento não emocional, mas material na relação, diminuindo as chances de haver a sua dissolução. Essa dinâmica, embora enraizada na tradição, ecoa um padrão universal de trocas entre homens e mulheres, que ainda persiste sob formas modernas.
Na cidade de Nova York, Sarah, uma universitária de 23 anos, deixa um restaurante caro acompanhada por um homem mais velho que bancou o jantar, o vinho e uma bolsa de luxo. Para ele, o presente representava um investimento, uma tentativa de solidificar um vínculo com expectativas não ditas, mas compreendidas. Para ela, era uma estratégia pragmática de ganhar independência financeira sem depender completamente de sua família. De acordo com teorias econômicas do comportamento humano, como as de Gary Becker, essas trocas refletem uma racionalidade instrumental, onde as partes envolvidas maximizam utilidades: ele busca companhia e potencial intimidade; ela, benefícios financeiros ou materiais.
Não estou sugerindo que esses cálculos estão sendo feitos conscientemente. Estou sugerindo que fomos cabeados pela evolução de modo que nossas decisões se dão com base em padrões de custo-benefício que se refletem em culturas e épocas diversas. É como um template psicológico que pode ser preenchido de formas variadas.
Abaixo, veremos dois exemplos claros disso: as sugar relationships ou relações transicionais, das quais você já deve ter ouvido falar por causa dos termos um tanto populares sugar daddy e sugar baby.
A modernização de trocas antigas
As trocas entre sexo, intimidade e recursos não são uma invenção contemporânea. Desde tempos ancestrais, as sociedades articularam essas dinâmicas de maneiras que refletiam a realidade social e econômica do momento. Hoje, porém, a internet e a lógica neoliberal amplificaram essas trocas, mercantilizando a intimidade e formalizando essas relações na forma de aplicativos que tornam o fenômeno global, tais como o Seeking.com, em inglês, e outras versões em português, como Meu Rubi e Meu Patrocínio. De uma perspectiva ampla, essas relações capturam bem o espírito do nosso tempo, que enfatiza o individualismo e a competição, transformando as relações humanas em transações regidas por custo-benefício, onde emoções e compromissos são reconfigurados como capital social e econômico.
Essas dinâmicas, porém, variam conforme o cenário cultural. Em países mais pobres, mulheres frequentemente entram nesses arranjos para suprir necessidades básicas. É basicamente o que sempre aconteceu ao longo da história humana e que caracteriza muitas das culturas ancestrais: homens concentram poder material, atraindo mulheres tanto por motivos afetivos quanto pragmáticos. Um estudo relativamente recente mistura insights evolutivos e etnográficos para sugerir que uma maior quantidade de homens e escassez de recursos explicaria as expedições vikings e seu sistema de concubinato. Mas isso é papo para outro dia.
Em nações ricas, a motivação muda: o foco passa a ser o luxo, o glamour, a possibilidade de consumir sem limites. Em ambos os casos, o que permanece constante é a ideia de troca como uma estratégia adaptativa para lidar com desigualdades sociais ou econômicas e também para perseguir status de forma conspícua. Dados etnográficos de sociedades africanas, como os analisados por Rachel Spronk, sugerem que essas práticas também podem atuar como formas de negociação de poder e agência feminina.
A biologia como base das trocas
Essas práticas modernas refletem um padrão que transcende culturas e épocas. Na evolução, fêmeas muitas vezes trocam acesso reprodutivo por proteção e recursos fornecidos pelos machos. Essa dinâmica é tão antiga quanto as espécies sociais. As diferenças biológicas, como o maior custo reprodutivo das fêmeas — que incluem gestação, lactação e cuidados parentais prolongados —, moldaram comportamentos que hoje consideramos culturais (e de fato se refletem na cultura construída por cima desses mecanismos biológicos), mas que têm profundas raízes evolutivas. Homens, com seus custos reprodutivos menores, são mais propensos a investir em estratégias de curto prazo, como trocas diretas de recursos por sexo casual, enquanto mulheres priorizam parcerias que garantam estabilidade e proteção a longo prazo. Esses padrões evolutivos são amplamente discutidos em teorias de seleção sexual propostas por cientistas como Robert Trivers.
De acordo com a lógica dessa teoria, você pode imaginar o sexo masculino e feminino como jogadores numa mesa de poker. Homens começam a jogo com muitas fichas, enquanto as mulheres têm uma única ao seu dispor. É claro que homens farão jogadas mais arriscadas, afinal, se eles perderem uma rodada, basta apostar suas infindáveis fichas numa próxima. O jogo para as mulheres é diferentes, afinal, há uma única ficha em jogo, o que as leva a pensar cuidadosamente em qual rodada apostar.
Prostituição: uma transação mais sincera?
A prostituição, considerada por muitos a “profissão mais antiga do mundo”, é um exemplo claro de trocas transacionais explícitas. No centro de São Paulo, João estaciona seu carro em uma rua conhecida pelo comércio sexual. Após uma breve negociação, ele paga a Camila, uma trabalhadora sexual, pelo que deseja. Ambos partem com suas necessidades atendidas: ele, com gratificação imediata; ela, com dinheiro para despesas essenciais. A transparência dessas transações as distingue de relações como o sugar dating, onde as intenções nem sempre são claras, e as trocas podem ser interpretadas de formas mais subjetivas. Segundo autores como Vojin Rakić, a prostituição, por ser mais direta, pode ser considerada mais ética em certos contextos, enquanto arranjos transacionais modernos às vezes envolvem manipulação ou expectativas ambíguas.
Essa manipulação pode ser apenas aquela normal do cotidiano, aquela que podemos chamar de persuasão, mas pode não ser apenas isso. O ponto é que praticantes frequentes dessas trocas explícitas de recursos por sexo e vice-versa podem manifestar certos padrões bastante problemáticos nesse contexto.
Personalidade e relações transacionais
Comportamentos transacionais, como as foodie calls — encontros motivados pelo desejo de uma refeição gratuita — ou as sugar relationships, frequentemente refletem traços de personalidade ligados à chamada Tríade Sombria. Narcisismo (autoestima inflada, senso de grandiosidade e necessidade constante de admiração), maquiavelismo (tendência a manipular e enganar os outros para alcançar objetivos pessoais) e psicopatia (falta de empatia, impulsividade e comportamento antissocial) são características que predispõem indivíduos a maximizar ganhos pessoais enquanto minimizam vínculos emocionais.
Provavelmente você pensou num homem como alguém muito representativo dessas características, mas tanto homens quanto mulheres estão entre esses indivíduos. Mulheres com altos traços de maquiavelismo e psicopatia têm maior probabilidade de usar encontros para obter vantagens materiais sem genuíno interesse romântico. Por exemplo, elas sairiam exclusivamente pelo desejo de obter uma refeição gratuita, sem interesse genuíno pelo parceiro. Da mesma forma, homens altos nos traços da Tríade Sombria tendem a enxergar o sexo como uma commodity, enfatizando a gratificação imediata e o controle, típicos de estratégias de vida rápida. É o típico homem que será amável para conseguir sexo casual e depois dará um ghosting.
Como vimos, a prostituição também pode ser considerada uma relação transacional, só que mais explícita (e portanto mais sincera, diriam alguns). Homens altos nos traços da tríade sombria frequentemente enxergam essas interações de forma desapaixonada e pragmática. Eles tratam o sexo como uma mercadoria, buscando satisfação rápida e controle sobre suas parceiras. A motivação principal desses indivíduos é a gratificação imediata, aliada ao desejo de poder, características típicas de uma "estratégia de vida rápida".
Finalmente, muito do que foi dito vale perfeitamente para sugar daddies e sugar babies. Tanto homens quanto mulheres que aceitam essas relações apresentam maior propensão ao maquiavelismo e à psicopatia subclínica. Nessas dinâmicas, a relação é vista como um jogo, onde o objetivo é maximizar os ganhos materiais e minimizar o comprometimento emocional.
Esses comportamentos demonstram como características socialmente indesejáveis podem ser instrumentalizadas para alcançar sucesso a curto prazo. E isso se intensifica particularmente em ambientes onde as normas sociais permitem ou até incentivam esse tipo de troca. Você provavelmente pensou em ambientes mais liberais como universidades, assim como outros ambientes frequentados por jovens, mas eu estou falando do aplicativos como o Tinder. Não é o assunto do texto, mas o perfil de pessoas que se utilizam desses aplicativos de relacionamento se parece bastante com o perfil daqueles que participam de relacionamentos transacionais.
Uma dança antiga em novos palcos
As sugar relationships e outras trocas íntimas contemporâneas revelam não apenas os desejos humanos, mas também as dinâmicas de poder e sobrevivência que moldaram nossa espécie. As interações humanas, veladas ou explícitas, permanecem profundamente influenciadas por nossas raízes biológicas e pelos sistemas econômicos contemporâneos. Essa dança, onde biologia e cultura se entrelaçam, continua a redefinir as fronteiras do desejo, do amor e do poder no cenário social moderno.