O progressismo na academia é uma nova ortodoxia
Será que nós, acadêmicos, estamos habilitados para reconhecer quando os valores inerentes à atividade científica se transformam em câmara de eco e em ortodoxia asfixiante?
Nunca fomos modernos
Em 1633, Galileu Galilei foi condenado por heresia após publicar o Diálogo sobre os dois sistemas máximos do mundo, uma defesa da teoria heliocêntrica. Ele se inspirou em Nicolau Copérnico, o 'heliocentrista' original, que só escapou da mesma acusação porque já tinha deixado o mundo dos vivos quando publicou De Revolutionibus Orbium Coelestium (Sobre a revolução das esferas celestes), em 1543.
Para a Igreja Católica, o heliocentrismo era uma heresia, mas o problema ia além das evidências científicas. Geocentrismo e heliocentrismo eram temas em disputa, mas dois pontos tornavam o heliocentrismo especialmente problemático. Primeiro, ele tinha raízes na tradição hermética, que associava o Sol à divindade. Segundo, e mais profundo, ele desafiava a metafísica cristã. Se a humanidade é o ápice da Criação, faz sentido que sua morada, a Terra, ocupe o centro do cosmos. Se a natureza manifesta a perfeição divina, então seria lógico que as órbitas fossem circulares e a astronomia refletisse as leis eternas da geometria. Era assim que medievais e modernos uniam Gênesis, a física aristotélica e a astronomia ptolomaica. Religião, ciência e metafísica pareciam contar a mesma história em idiomas diferentes. O hermetismo, junto com seu heliocentrismo, era um obstáculo a isso desde o Renascimento, fato que explica a condenação de Giordano Bruno, um praticante confesso do hermetismo, à fogueira.
Questionar tudo isso não era apenas polêmico; era uma ruptura radical com o sentido de ordem universal. A teologia e a metafísica cristãs definiam tanto as perguntas quanto as respostas possíveis. Quando novas evidências começavam a surgir, a reação natural não era reavaliar a teoria macro, mas rejeitar as evidências. Afinal, questionar essa narrativa significava abalar não só a astronomia, mas também as bases da moral e da organização social. Era um ataque aos próprios pilares da sociedade.
Nós que vivemos no século XXI simplesmente não podemos entender isso.
Ou será que podemos?
Minha tese é que, sim, podemos entender exatamente o que um medieval sentia ao ter suas crenças ameaçadas tão profundamente. Essa experiência de desconforto não é exclusiva de uma época ou lugar; é uma resposta universal ao colapso das certezas fundamentais. Conservadores e progressistas de hoje sentem algo semelhante quando confrontados por ideias que desestabilizam suas visões de mundo. Cada época tem seus próprios 'sagrados', e a história não costuma ser gentil com aqueles que ousam desafiá-los.
Lamentavelmente, as universidades não são uma exceção a essa regra. Dizem que vivemos em uma era de Razão, mas nossas ciências sociais parecem carregar o peso de uma nova teologia.
Santo graal versão secular
Nos corredores das universidades, onde a busca pelo conhecimento deveria ser o farol mais brilhante, uma sombra raramente reconhecida de faz presente: o viés político. A sociologia, uma disciplina que aspira a decifrar os códigos de nossa vida social, muitas vezes se vê emaranhada em compromissos ideológicos. Para alguns de seus representantes, a ciência não só não é neutra como deve se posicionar ideologicamente, enquanto para outros essa parcialidade ofende a essência da busca pelo conhecimento.
Na prática, a sociologia americana parece capturada por um projeto sagrado, mas não um sagrado devotado ao conhecimento. Trata-se de um compromisso enraizado com valores progressistas que, paradoxalmente, limitam a profundidade de seus próprios insights. Não é a defesa de valores em si que preocupa, mas o condicionamento da ciência a agendas de transformação social. Quando evidências são negadas em nome de uma visão de mundo, a busca pela verdade cede lugar a um novo dogma.
Reconheço que a ciência não é neutra; valores como honestidade e caridade interpretativa orientam e devem orientar a atividade científica. No entanto, isso difere dos compromissos ideológicos que cegam cientistas para evidências que desafiam suas crenças. Subordinar o conhecimento a qualquer cosmovisão — seja progressista, conservadora ou cristã — aprisiona a ciência em um cabresto ideológico que determina as perguntas que podem ser feitas e quais respostas são permitidas.
Nos gabamos de ter abandonado as superstições medievais desde o Iluminismo, mas talvez só tenhamos erigido uma nova forma de teologia.
A sociologia e seu projeto sagrado
Você já se perguntou se realmente nos distanciamos da mentalidade medieval? Considere a sociologia, proclamada por Augusto Comte como a Rainha das Ciências Sociais. Hoje, sua história está longe de ser neutra e descomprometida.
A afirmação de que a sociologia, especialmente nos Estados Unidos, possui um viés progressista encontra respaldo em dados concretos e análises críticas da cultura acadêmica. Embora seja verdade que toda ciência carrega alguma parcialidade, é diferente quando essa parcialidade é deliberadamente orientada por agendas políticas. Aqui, a imparcialidade cede lugar à exclusão de ideias divergentes; liberdade intelectual é substituída por cabresto.
Uma das evidências mais claras é a rejeição sistemática de sociólogos a indivíduos com visões conservadoras. George Yancey, em Compromising Scholarship, revela dados de pesquisas que mostram a antipatia acadêmica por grupos associados ao conservadorismo. Esses dados indicam que o viés não apenas afeta quem é contratado ou ouvido, mas também estreita o escopo da pesquisa sociológica. A sociologia, assim, perde sua capacidade de incorporar a diversidade ideológica, favorecendo um ambiente monocromático intelectualmente, mas não em relação à raça, gênero e orientação sexual. Um ambiente como esse desestimula debates reais e cria câmaras de eco.
Esse viés vai além das preferências pessoais. Sociólogos progressistas superam os conservadores em uma proporção esmagadora, criando um terreno fértil para filtros ideológicos. Eric Kaufmann, num estudo de 2021, descreve bem esse cenário:
“Expressar visões conservadoras em sociologia é como andar em um campo minado.”
Outra evidência é a preferência por certos tópicos de pesquisa. Temas como desigualdade social, racismo e sexismo dominam os periódicos e os livros didáticos. Christian Smith, em The Sacred Project of American Sociology, observa que essa seleção reflete uma agenda moral que ultrapassa os limites da ciência. Esse comprometimento não seria um problema se a exclusão de visões alternativas não fosse a norma.
Yancey também destaca o uso da linguagem como arma ideológica. Em blogs acadêmicos, termos como “fundamentalista” e “reacionário” aparecem com frequência para descrever conservadores, muitas vezes de forma pejorativa. Essa retórica desumaniza opositores e agrava a polarização no debate público. Em vez de promover o diálogo, reforça um senso de superioridade moral.
A memória de eleições passadas ilustra o impacto dessa exclusão. Durante a campanha de Donald Trump, a esquerda optou por desqualificar conservadores como "homens brancos, rústicos e burros." Esse ataque não apenas reforçou estereótipos, mas também alienou grande parte do eleitorado. Como apontado em Nacional-Populismo: A Revolta Contra a Democracia Liberal, essa retórica ajudou a solidificar o apoio a Trump e a diminuir o eleitorado de sua oponente democrata, a candidata Hilary Clinton. A lição é que rotular e excluir raramente gera os resultados esperados. Geralmente, o tiro sai pela culatra.
Mesmo no ambiente universitário, essa dinâmica é palpável. Durante minha trajetória acadêmica, entre 2010 e 2022, eu que sempre me identifiquei como sendo de esquerda politicamente e ainda mais naquela época, testemunhei a intolerância de colegas em relação à pluralidade de pensamento. Na graduação, posições políticas divergentes eram frequentemente tratadas com desprezo, o que é esperado até mesmo entre times de futebol. Mas não era só desprezo. Havia também a vontade de limar o debate e alcançar uma hegemonia de pensamento dentro do espaço universitário. Certa vez, ouvi estudantes indignados pela presença de um grupo pró-PSDB no campus. A mera existência desse grupo parecia intolerável, mostrando como a diversidade de pensamento muitas vezes é apenas performática ou nem isso. De fato, isso não é só um exemplo anedótico, é algo atestado em pesquisas feitas aqui no Brasil e lá fora.
Preocupantemente, a rixa chega à pesquisa. Os exemplos anedóticos da minha área, a psicologia, abundam. Na graduação, os alunos mais politicamente militantes (destaque para os foucaultianos) se irritavam para valer quando psicologia evolucionista era citada em sala de aula. "Isso é de um reducionismo", lançou um desses alunos, de barba esfiapada e cabelos longos trançados, quando a professora falou, em psicologia da aprendizagem, que os seres humanos não aprendem coisas ilimitadamente porque temos um cérebro ao menos com mais facilidade para absorver certos tipos de informação e não outros. Visões opostas ao credo-tradicional-tábula-rasista das ciências sociais são marginalizados. Por muito tempo me queixei do congresso americano ser um verdadeiro think tank de evangélicos radicais. Mal sabia eu que estava prestes a perceber que a academia é uma câmara de eco da esquerda.
É possível que você esteja lendo tudo isso como uma defesa estapafúrdia da neutralidade da ciência. A ciência não é neutra, isso é certo. A ciência estende nossa capacidade básica de conhecer a realidade e diminui a influência de certos vieses (não de todos), mas existem limites porque nossa própria capacidade cognitiva de conhecer a realidade é limitada -- o que é explorado no livro A Ciência Pode Explicar Tudo?, já resenhado aqui. Conhecer é interagir com a realidade, e não existe interação neutra.
A crítica à objetividade científica, frequentemente encontrada na literatura sociológica, pode ser interpretada como uma forma de ativismo, abrindo espaço para a promoção de agendas políticas específicas sob o pretexto da pesquisa acadêmica. Ao negar a possibilidade de uma ciência neutra e imparcial, certos sociólogos justificam a inserção de agendas políticas na produção de conhecimento, desfocando os limites entre pesquisa e militância.
A sociologia assume um papel soteriológico, um "projeto sagrado" que transcende a busca pelo conhecimento científico e assume uma missão moral e espiritual, imbuída de uma ética e um fervor quase religioso. Para alcançar essa visão utópica, a sociologia americana, segundo Smith, engaja-se em uma cruzada contra desigualdades, injustiças e opressões. E nessa cruzada os alvos são estruturas tradicionais — como família, religião e capitalismo (lembrem de Amanda Palha dizendo isso em alto e bom som em palestra no canal da Editora Boitempo).

Tudo acontece em prol de um projeto de emancipação do indivíduo de suas amarras sociais. É como se existisse um eu puro e intocado a ser liberado das amarras da sociedade opressora, das categorias linguísticas, de gênero, de orientação sexual e etc. Está aí uma clara marola das ideias de Jean-Jacques Rousseau que ajudarão a criar o tsunami intelectual e político que vai varrer o século XIX e XX europeu, intelectual e politicamente.
Progressismo, ciências humanas e a imanentização do Schaton cristão
A sociologia pode ser uma ciência, mas é uma ciência que já nasce comprometida com certos valores e com uma metafísica naturalista que não passa de uma secularização de estruturas metafísicas já presentes no discurso cristão. Aliás, isso vale para todo projeto de conhecimento da realidade que nasce do século XV em diante -- não se deve confundir honestidade na busca pelo conhecimento com ausência de pressupostos metafísicos. O progressismo como o conjunto de valores capazes de redimir a humanidade e seus pecados históricos, culturais e sociais é herdeiro óbvio desse momento.
A sociologia tem uma história irônica. Hoje, sociólogos tendem ao relativismo epistêmico em alguns casos, porém, sua origem está ligada ao positivismo de Augusto Comte, um socialista utópico que acreditava no materialismo e na neutralidade científica como capazes de salvar a humanidade, de acabar com todas as suas agruras e inaugurar uma verdadeira utopia. Para Comte, a sociologia era a culminação do progresso humano no domínio do conhecimento em prol desse objetivo, na direção da sua Nova Atlântida (como diria Francis Bacon, no qual se lê os tijolinhos dessas ambições que encontrariam seu ápice no seculo XIX). Sua visão hierárquica das ciências colocava a sociologia no topo, pois acreditava que apenas ela poderia integrar as descobertas das ciências naturais e aplicá-las à organização da sociedade. A sociologia seria, por meio da racionalidade, capaz de resolver problemas morais e sociais que antes eram delegados às religiões, propondo uma ciência que não apenas explicasse o mundo, mas também guiasse a humanidade em direção ao bem comum. Assim, a sociologia assumiu uma posição que transcendeu o papel tradicional da ciência, aproximando-se de uma função espiritual de orientação.
Comte não apenas teorizou a sociologia como ciência suprema, mas também buscou atribuir-lhe um papel espiritual por meio de sua “Religião da Humanidade”. Essa religião secular realizava um objetivo já posto a cabo desde o Renascimento: a substituição da transcendência divina pela humanidade como objeto de veneração. O culto à razão e ao progresso baseava-se na ideia de que a ciência sociológica poderia prover diretrizes éticas e morais que antes pertenciam ao domínio das religiões tradicionais. A Religião da Humanidade introduziu símbolos, rituais e uma hierarquia clerical para consolidar o positivismo como força moral. Comte acreditava que a moralidade deveria ser construída em bases científicas, guiada pela sociologia. A ciência não era só um instrumento de análise objetiva, mas também uma nova forma de religião, com dogmas e uma narrativa soteriológica, na qual a salvação não se encontrava em um além, mas no progresso humano terreno. Qualquer semelhança com as ideologias que balançariam o mundo décadas depois, no século XX, não é mera coincidência.
Essa soteriologia secular pode ser chamada de imanentização do Schaton. Essa expressão ganhou popularidade com o filósofo político Eric Voegelin, em A Nova Ciência da Política, que defendia que muitas ideologias modernas (liberalismo, marxismo, fascismo e nazismo), incluindo o positivismo, representam tentativas de secularizar a teologia cristã e seu projeto de salvação espiritual (ideia resgatada recentemente em Sapiens, do historiador israelense Yuval Harari). É a doutrina espiritual cristã transformada em doutrina material.
A sociologia positivista exemplifica essa tendência ao propor que a humanidade, guiada pela ciência, poderia alcançar uma sociedade ideal. Em outras palavras, um Éden terreno (qualquer semelhança com a teologia da libertação não é mera coincidência).
Conclusão
Onde o progressismo entra nisso? O progressismo decorre espontaneamente dessa filosofia cósmica, digamos assim, que antes era representada pelo positivismo. É o que a teologia cristã representava para o conhecimento medieval -- uma forma de delimitar que tipo de conhecimento era válido e o que poderia ser feito com ele. Quando sociólogos dizem, por exemplo, que não se deve estudar diferenças entre homens e mulheres, a distribuição de inteligência entre grupos e outros vetos assim, eles estão fazendo a mesma coisa que a elite de sacerdotes fazia no Medievo. Só que agora não há redenção espiritual, há redenção material, social, cultural. Não há pecado original para macular a alma, mas há uma dívida histórica a ser paga. Não há os eleitos de uma religião em particular, mas há os eleitor de grupos sociodemográficos particulares. A justiça não é mais divina, é social. Não é mais o Deus judaico-cristão que absolve, mas a história.
Eterna admiração por quem tem a coragem de questionar o tragicômico cenário das universidades brasileiras hoje. Onde pretensamente se defende a liberdade, mas não há liberdade de se falar e debater ideias diferentes de verdade…
Cara, seu texto é muito bom. Eu gosto muito do Christian Smith, seu personalismo realista crítico é interessante.