Como alimentar um mundo faminto
Produzir alimento suficiente para a população mundial de 2050 será fácil, mas fazer isso com um custo aceitável ao planeta dependerá de pesquisas em diversas áreas, desde sementes de alta tecnologia até práticas agrícolas arcaicas.
Com a expectativa de que a população mundial passe dos 6,8 bilhões atuais para 9,1 bilhões em 2050, um certo alarmismo malthusiano foi instalado : como alimentar todas essas bocas extras? A população do mundo mais do que duplicou, passando de 3 a 6 bilhões entre 1961 e 2007, mas a produção agrícola manteve o ritmo - e projeções atuais sugerem que ele deve continuar assim. Certamente, as alterações climáticas adicionam um alto grau de incerteza às projeções de produção agrícola, mas isso apenas evidencia a importância do monitoramento e da pesquisa para refinar essas previsões. Além disso, nas palavras de um oficial da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a tarefa de alimentar a população mundial em 2050, por si só, parece uma tarefa "fácil" .
Fácil, diga-se, se o mundo criar novas faixas de terra, aplicar ainda mais fertilizantes e pesticidas e esgotar mais reservas de águas subterrâneas, já escassas. Mas limpar centenas de milhares de hectares de terras selvagens – já que a maior parte da terra que seria colocada em uso está na América Latina e na África – enquanto se expande a atual agricultura, ambientalmente destrutiva e de uso intensivo de recursos naturais, parece uma opção ruim. É aí que está o verdadeiro desafio nas próximas décadas: como expandir a produção agrícola maciçamente sem aumentar em muito a quantidade de terra utilizada.
Na verdade, é necessária uma segunda Revolução Verde – o que a Royal Society britânica acertadamente descreve como a "intensificação sustentável da agricultura global". Tal revolução exigirá um realinhamento generalizado das prioridades na pesquisa agrícola. Há uma necessidade urgente de novas variedades de culturas que ofereçam rendimentos maiores e demandem menos água, fertilizantes e outros insumos – sementes criadas, por exemplo, por meio da pesquisa, há muito tempo negligenciada, em modificação de raízes – e de culturas que sejam mais resistentes à seca, calor, pragas e inundações. Igualmente importante é a pesquisa volta à tecnologia menos avançada, como a rotação de culturas, a criação mista de animais e plantas na agricultura familiar, o manejo do solo e os resíduos de contenção. (Entre 1/4 e 1/3 dos alimentos produzidos no mundo inteiro se perde ou estraga.)
As nações em desenvolvimento poderiam obter ganhos significativos na produtividade por meio de uma melhor utilização das tecnologias e práticas modernas. Isso, no entanto, exige dinheiro: a FAO estima que, para atender à população de 2050, os investimentos em toda a cadeia agrícola no mundo em desenvolvimento devem dobrar para US$ 83 bilhões por ano. A maior parte desse dinheiro deve ir para a melhoria da infraestrutura agrícola, desde a produção até o armazenamento e processamento. Na África, a falta de estradas também dificulta a produtividade agrícola, encarecendo e dificultando o acesso dos agricultores a fertilizantes sintéticos. Além disso, a pauta de pesquisa precisa estar focada nas necessidades dos países mais pobres e com recursos limitados, onde vive a maioria da população do mundo e o crescimento populacional será maior nas próximas décadas. Acima de tudo, uma reinvenção agrícola exige uma abordagem multidisciplinar envolvendo não somente biólogos, agrônomos e agricultores, mas também ecologistas, tomadores de decisões políticas e cientistas sociais.
Para dar o devido reconhecimento, os cientistas agrícolas do mundo já estão adotando uma visão bem mais abrangente. Em março de 2010, por exemplo, eles se reuniram na primeira Conferência Mundial sobre a Investigação Agrícola para o Desenvolvimento, em Montpellier, na França, para fazer um realinhamento das agendas de investigação e ajudar a atender as necessidades dos agricultores nos países pobres. No entanto, estes planos não darão frutos a menos que recebam consideravelmente mais apoio de autoridades políticas e de financiadores.
O aumento dos gastos públicos em pesquisa agrícola teve seu ápice na década de 1970 e vem minguando desde então. Atualmente, é em grande parte estável em países ricos e vem caindo em alguns países da África subsaariana, onde as necessidades alimentares estão entre as maiores do mundo. As grandes exceções são a China, onde os gastos têm crescido exponencialmente na última década, e, em menor medida, a Índia e o Brasil. Estes três países parecem prestes a se tornar os principais fornecedores de tecnologias e conhecimento científico relevantes para os países mais pobres. No entanto, os países ricos também têm uma responsabilidade, e as demandas de cientistas por aumentos significativos nos gastos públicos em pesquisa agrícola que seja mais diretamente relevante para o mundo em desenvolvimento são mais do que justificáveis.
O setor privado também tem um papel importante a desempenhar. No passado, empresas do setor de agrobiotecnologia estiveram centradas, principalmente, nos lucrativos mercados agrícolas de países ricos, nos quais a pesquisa do setor privado responde por mais da metade de toda a investigação na área. Recentemente, no entanto, elas começaram a se engajar em parcerias público-privadas para gerar culturas que atendam às necessidades dos países mais pobres. Tal movimento reflete o surgimento, mais de uma década atrás, de parcerias públicas com empresas farmacêuticas para enfrentar uma falha de mercado semelhante: o desenvolvimento de medicamentos e vacinas para doenças negligenciadas. Como tal, ele é bem-vindo e deve ser expandido.
Culturas geneticamente modificadas são uma das principais ferramentas da agricultura sustentável, junto a técnicas tradicionais de [melhoramento por] reprodução. No entanto, elas não são a solução milagrosa para a fome no mundo, apesar de muitos de seus defensores dizerem o contrário. Na prática, a primeira geração de transgênicos tem sido, em grande parte, irrelevante para os países pobres. Superestimar tais benefícios só deve aumentar a desconfiança do público em relação aos organismos geneticamente modificados, uma vez que isso pode ser encarado como uma confirmação de noções pré-concebidas sobre a privatização e a monopolização da agricultura e o foco nos lucros.
A ciência e a tecnologia tampouco são, por si sós, uma solução para a fome no mundo. A pobreza, e não a falta de produção de alimentos, é a origem real. O mundo atual produz alimento mais do que suficiente, mas cerca de 1 bilhão de pessoas ainda passa fome porque não pode pagar por ele. A crise alimentar de 2008, que levou cerca de 100 milhões de pessoas à fome, foi mais resultado de uma volatilidade do mercado – que causou fortes aumentos nos preços dos alimentos e provocou rebeliões em diversos países – do que de uma escassez de alimentos, com causas que vão muito além de oferta e demanda. A economia pode afetar a oferta de alimentos de outras formas. Os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pagam subsídios salariais a seus agricultores, chegando a cerca de US$ 1 bilhão por dia, o que dificulta que agricultores em países em desenvolvimento conquistem uma posição nos mercados mundiais.
Ainda assim, a pesquisa pode ter um impacto decisivo ao tornar possível uma agricultura sustentável e produtiva – uma receita garantida (assim como o tratamento de doenças negligenciadas) para a criação de um círculo virtuoso que tire comunidades da pobreza.
Editorial da Nature, 28 de julho de 2010.
Tradução: Amanda Breitsameter
Revisão: Eli Vieira