Comunistas queriam reconstruir a alma humana
O plano insano de refundar a alma humana no laboratório do marxismo-leninismo gerou trauma, mas também nostalgia. Em suma, o contraditório Homo sovieticus.
Antes do amanhecer, a voz do Estado
De manhã, o som metálico do alto-falante invadia os apartamentos antes do sol. Uma voz grave anunciava as boas notícias do dia anterior — produção superada, inimigos derrotados, traidores expostos — e o chiado seguinte, vindo da interferência elétrica, soava como um suspiro macabro.
As pessoas ouviam em silêncio, imóveis, como se a própria respiração pudesse ser interpretada como dúvida. Está com medo do chiado, é? Por que? Alguma atividade ilícita recente?
Na rua, os cartazes eram grandes demais para os prédios. Rostos sorridentes, frases curtas, promessas de vitória. As vitrines exibiam o mesmo tipo de sapato, a mesma calça, o mesmo pão de formato idêntico. Os olhares se desviavam antes de se encontrarem. Quando alguém ria, ria baixo, como um pedido discreto e antecipado de desculpas.
As janelas estavam quase sempre fechadas. Havia quem mantivesse as cortinas corridas até à noite, não por medo da luz, mas por causa das sombras. A privacidade era um luxo que já não existia. Todos sabiam — mas não diziam — que havia ouvidos nos interruptores, olhos nas paredes, nos telefones.
À noite, nas moradias coletivas, as conversas sussurradas na cozinha soavam mais como orações. Alguns ligavam o rádio para disfarçar o som das palavras. Outros apenas olhavam o vapor sair da chaleira e esperavam que o barulho bastasse. Era assim que se falava sobre o impensável: atrás de portas duplas, entre ruídos de panelas e torneiras.
Essa era a vida comum em um país que não existia em nenhum mapa. Chamava-se Oceânia -- o país inventado pelo jornalista George Orwell no seu amplamente conhecido 1984 --, e todos os seus habitantes viviam sob o olhar invisível do Grande Irmão.
A Fábrica do Homo Sovieticus
Quando a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch começou a registrar as vozes que restaram da União Soviética, ela encontrou a mesma paisagem sonora de 1984. Seu livro, O Fim do Homem Soviético, é um coral de sobreviventes — operários, soldados, professores, donas de casa — todos tentando entender o que foi viver dentro de um ideal.
Eles falam de um tempo em que a vida era organizada como um quartel e a alma, como um projeto. Um homem diz que aprendeu desde cedo que “a morte pela pátria era mais bonita que a vida para si mesmo.” Uma mulher lembra que “as lágrimas eram perigosas — podiam ser interpretadas como dúvida política.” Outro recorda o dia em que denunciou o pai e passou a acreditar que o amor pessoal era uma forma de egoísmo.
A cada relato, o que emerge não é apenas o retrato de um regime, mas o esboço de um novo tipo humano. O sistema não queria apenas governar corpos — queria desenhar consciências, moldar afetos, polir a alma até que refletisse o ideal. Era a utopia travestida de pedagogia: uma fábrica que produzia cidadãos de uma pureza impossível.
Uma escuta diferente
O que Svetlana Aleksiévitch faz em seu livro é ouvir essas consciências moldadas pelo regime. E o que ela descobre é o verdadeiro “drama socialista”: o conflito entre o ideal e o individual, que se mostrava na rica vida interior de quem viveu dentro de um experimento que almejava diluir essa centelha numa “consciência coletiva”. A “uniformização psicológica” deveria converter milhões de consciências em uma “única cabeça global”, criando assim “novo Adão”.
Ao contrário das narrativas da “grande história patriótica”, essas histórias não podiam ser captadas pelas escutas do Partido, nem distorcidas por ideólogos.
O Homo sovieticus não seria fabricado sem custo. Toda utopia, no fim, precisa de escombros humanos.
O horror do sistema soviético raramente usava monstros. Ele vestia casacos simples, consertava cercas, dava bom-dia aos vizinhos. O carrasco era, quase sempre, uma “pessoa comum, até mesmo boa”. Uma mulher lembra o dia em que o pai foi levado, em 1937. Ele voltou anos depois, mirrado, irreconhecível. Descobriu-se que o delator não fora um estranho, mas “nosso vizinho... tio Iura”.
Essas histórias se repetem, variando apenas os nomes. A denúncia, escrita por mãos conhecidas; o silêncio, mantido por amor e medo. Era assim que o mal se infiltrava — sem rosto e sem estrondo. Hannah Arendt chamaria isso de banalidade do mal: atrocidades cometidas por homens comuns que se viam como engrenagens de uma máquina maior. Um ex-agente do NKVD — a polícia secreta que precedeu a KGB — confirmou anos depois que sua lealdade era absoluta: “O que o Partido pede é uma ordem.” Ninguém matava; todos apenas cumpriam ordens.
Com o tempo, a linha entre culpa e inocência se apagou. Uma mulher descobriu que a carta que condenara o pai fora escrita pela “tia Ólia, sobrinha dele”. A lógica era perfeita: “a vítima é o carrasco, e no fim o carrasco também é vítima.” O país inteiro aprendeu a viver dentro dessa ambiguidade moral. Quando a União Soviética desabou, ninguém se sentia responsável. Todos haviam “lutado na guerra”, “erguido as cidades dos escombros”. Tudo isso em nome de um ideal. O sistema girava sozinho, como se o movimento tivesse vida própria.
O próprio Stálin compreendia a dinâmica. “Você acha que Stálin sou eu”, disse uma vez ao filho. “Não. O Stálin é ele” — e apontou para o retrato na parede. Ao fazer isso, transferia não apenas a autoridade, mas também a culpa. O verdadeiro soberano era a máquina: uma entidade impessoal, feita de ideologia. Uma engrenagem que girava sozinha, dispensando motor humano. Essa máquina funcionou incessantemente por décadas — moendo vontades, justificando delações, transformando cada gesto em obediência.
Para muitos, o Estado era o único amor possível. O ideal absorveu tudo — “substituiu até a própria vida.” A morte, ensinavam, era “mais bela que a vida.” A psicologia era bélica: ou se guerreava, ou se esperava a próxima guerra. No juramento do Komsomol — a organização juvenil do Partido Comunista, onde adolescentes aprendiam disciplina, patriotismo e lealdade absoluta ao Estado —, jovens prometiam dar “todas as forças e, se necessário, a própria vida pela pátria.” E o faziam com fé — uma fé que dispensava deuses, mas exigia sacrifício.
No fim dos anos oitenta, o império começava a desmoronar. Depois de sete décadas de filas, silêncio e vigilância, o país estava cansado — e faminto.
Mikhail Gorbatchóv, um homem jovem para os padrões do poder soviético, subiu ao comando prometendo “reconstrução” e “transparência”. Chamou o plano de Perestroika e Glasnost, e acreditou que o socialismo podia ser salvo. Abriu as janelas. A liberdade entrou — e com ela, o vento gelado do colapso.
No início, havia festa. A televisão mostrava multidões nas ruas, bandeiras, rostos sorrindo, flores presas nos casacos. Por um breve instante parecia possível acreditar: o socialismo ruim havia acabado. Gorbatchóv falava em liberdade, e o povo o ouvia como quem desperta de um longo coma. “Multidões enormes de gente com rostos felizes”, escreveu Aleksiévitch — um país inteiro embriagado pela ideia de que o medo tinha terminado.
Mas a alegria durou pouco. A liberdade, quando chegou, veio crua, desorganizada, sem manual de instruções. Era preciso “demorar para sair da anestesia da ideia”, e nem todos conseguiram. Aos poucos, começaram a surgir histórias. Fotografias amareladas, cartas vindas de longe, nomes riscados em listas oficiais. Falava-se dos gulags — campos de trabalho na Sibéria onde milhões haviam desaparecido. As pessoas se olhavam com espanto: o horror estivera o tempo todo ali, escondido sob o orgulho das paradas militares.
Alguns chamavam o socialismo de doença moral; outros ainda acreditavam na ideia, mas lamentavam o que ela se tornara. E havia os nostálgicos, os que diziam que “naquela época é que era bom”. Para eles, Gorbatchóv não prestava. “Ele traiu não só o partido”, disse um velho comunista, “traiu todo o século XX.” Já para outros, era só um sonhador perdido num país que não sabia mais o que fazer com a liberdade.
Com o colapso, ruíram todos os valores — menos o valor da vida. As lojas começaram a falar outra língua: preços em dólar, vitrines luminosas. O “pequeno” tornou-se grande: a reabilitação da pequena burguesia, antes ridicularizada, agora triunfava. “O que se esperava era uma luta de ideias”, escreveu uma professora, “mas no lugar dela vieram as roupas bonitas e as comidas gostosas.” A literatura, que antes era vida, perdeu o encanto. Muitos venderam suas bibliotecas — “os livros nos decepcionaram.” O heroísmo deu lugar ao desejo de “viver bem”, não mais “morrer bem.”
A nova ordem trouxe abundância e vergonha. A vergonha de ser pobre, de não ser bem-sucedido, de não saber negociar. O antigo orgulho de pertencer a um país imenso deu lugar à nostalgia — “éramos um grande país”, dizia um homem, “mesmo que fôssemos como a África mais pobre, só que com mísseis.” Nas ruas de Moscou, vendiam-se jeans, bananas, perfumes franceses — a vitrine do novo mundo. E, ainda assim, havia quem olhasse e dissesse: “Ficou mais fácil viver, mas também mais repugnante.”
O silêncio após a revolução
Eles ainda estavam por ali — os homens e mulheres da velha fábrica. Caminhavam entre vitrines novas, silenciosos — estavam aprendendo a respirar em outro clima, o clima do consumo, da fartura, do excesso que dificulta a escolha. O homo sovieticus, cultivado por setenta anos num laboratório de ideais, agora andava de cabeça baixa, “envergonhado”, tentando viver uma vida não soviética.
O dinheiro, antes considerado vergonhoso, tornou-se a nova medida de tudo. As lojas exibiam anúncios com frases em inglês, e o rublo perdia valor enquanto a palavra “dólar” ganhava prestígio. A alma russa, dizia Tsvetáieva, carrega “a mentira do dinheiro” de forma inextirpável — o que esperar de uma sociedade que passou de um estilo de vida czarista, quase medieval, direto para uma ditadura comunista?
Os novos heróis não eram empreendedores, mas gângsteres. O lucro parecia uma paródia, um instinto aprendido às pressas. “Ganhar é fácil”, disse um rapaz, “mas é difícil não ter vergonha de ganhar.”
O passado se tornara um espetáculo, uma mercadoria. Tudo que era soviético estava de novo na moda — os doces, as músicas, a vodca. Nos campos stalinistas de Solovkí e Magadan, turistas podiam vestir macacões de prisioneiro e bater picaretas contra o gelo “para sentir a história na pele”. E a crença na utopia, distorcida, resistia: metade dos jovens entre dezenove e trinta anos dizia considerar Stálin “um grande político”. O carrasco transformara-se em souvenir.
Restou o vazio. A vida sem ideal não sabia para onde ir. “O socialismo morreu, e eu fiquei”, dizia uma mulher. “Mas para quê?” As pessoas buscavam sentido como quem busca remédio. Curandeiros como Tchumak e Kachpiróvski — figuras televisivas que prometiam curas pela tela, impondo as mãos sobre o público invisível — lotavam estádios para curar a alma. Outros procuravam psicoterapeutas — algo novo, quase estrangeiro. A “Grande História” havia acabado, mas a necessidade de crer não.
No fim, restou o mesmo impulso que moveu tudo: o sonho. “O ser humano vai sempre sonhar com a Cidade do Sol”, disse uma mulher na fila de um supermercado. Olhava para o nada, as mãos vazias, o brilho das vitrines no rosto. “Só que agora ninguém sabe onde ela fica.”



