O desempenho das cotas na Unesp
Uma década depois, o que os números mostram é mais complexo do que o debate costuma admitir.
Em 2014, os primeiros cotistas entraram na Universidade Estadual Paulista (Unesp) sob o signo da esperança: a promessa de que, com as portas abertas, a desigualdade começaria a recuar.
Dez anos depois, as planilhas contam outra história: o acesso se ampliou, mas o caminho até a formatura continua desigual.
O que o debate político tende a reduzir a slogans — justiça social de um lado, meritocracia do outro — ganha, nos números, contornos muito mais ambíguos.
O conflito invisível
As cotas nasceram sob o impulso da reparação moral. De um lado, quem as defende fala em equidade e dívida histórica. De outro, quem as critica fala em mérito e nivelamento por baixo. Em muitos casos, ambos evitam os números — uns por achar que são frios demais, outros por temer o que podem revelar.
Em 2025, três pesquisadores da própria Unesp (R. D. Matheus, E. M. Gennaro e M. T. Yamashita) decidiram olhar diretamente para eles. O artigo, publicado no arXiv, analisou mais de dez anos de dados, de 2013 a 2025, comparando o desempenho de estudantes de três grandes áreas: Física, Biologia e Pedagogia.
Os resultados não se encaixam bem nas narrativas conhecidas. Nem um sucesso incontestável, nem um fracasso retumbante, apenas uma sucessão de curvas que sobem e param em alturas diferentes.
A mecânica das cotas
As regras do jogo são simples à primeira vista. Desde 2013, a Unesp reserva metade de suas vagas a estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Dentro dessa metade, 35% do total é destinada a candidatos que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas. O sistema foi batizado de SRVEBP — Sistema de Reserva de Vagas para a Educação Básica Pública — e tornou-se modelo para outras universidades estaduais.
Mas a simplicidade termina aí.
Como explicam os autores do artigo Effectiveness of Quota Policies Across STEM, Biological, and Humanities Programs (2025), o processo inclui um mecanismo de realocação automática. Se um candidato de escola pública (EP) ou pertencente à categoria racial (PPI) obtém nota alta o suficiente para ser aprovado na concorrência geral, ele é classificado como SU (Sistema Universal) — e a vaga reservada é liberada para outro estudante da mesma subcota. O mesmo ocorre dentro da hierarquia: um candidato PPI com nota acima do corte da escola pública é movido para o grupo EP, liberando uma vaga PPI.
O resultado é uma espécie de drenagem silenciosa. Os melhores estudantes de escola pública e de grupos raciais acabam migrando para categorias superiores. O grupo PPI — aquele que, no discurso público, costuma simbolizar o “beneficiário direto” das cotas — fica, por construção, associado às menores notas de corte.
O sistema, portanto, não reflete apenas recortes sociais ou raciais, mas também estratos de desempenho. Em outras palavras: SU, EP e PPI são categorias políticas, mas funcionam, na prática, como faixas de pontuação.
Matheus e seus colegas chamam atenção para esse ponto. Os resultados não devem ser interpretados como avaliações de raça ou origem escolar, explicam no artigo. A correlação observada está primariamente ligada ao desempenho no exame de admissão. A advertência é importante: grande parte das comparações públicas entre cotistas e não cotistas ignora esse detalhe estrutural.
Nas tabelas da Unesp, o efeito se traduz em curvas sobrepostas de notas, como as da Figura 9 do estudo: os estudantes SU concentram-se no topo (média 60,5), os EP no meio (49,9) e os PPI na base (44,7). Não é uma diferença abissal, mas o suficiente para deslocar as probabilidades de sucesso em um curso seletivo.
Essa engenharia interna raramente aparece no debate público. Na retórica, as cotas são tratadas como um corte binário — cotista e não cotista —, quando na prática formam um gradiente. O modelo da Unesp torna explícito o que outras universidades preferem não dizer: a linha entre política e desempenho não é nítida.
Deixemos os números falarem
Há algo de hipnótico nas curvas de desempenho acadêmico. Elas sobem, achatam, se separam. Quando vistas de longe, essas linhas lembram as próprias rotas dos estudantes pelos corredores da universidade. Cada linha é uma vida resumida em porcentagens.
Foi a partir dessas curvas que os autores do estudo resolveram testar o efeito real das cotas. A análise se concentrou em três cursos com naturezas distintas: Pedagogia, Biologia e Física.
Pedagogia representava as humanidades, com altas taxas de aprovação e avaliações mais subjetivas; Biologia, as ciências intermediárias, com seleção moderada e carga teórica equilibrada; e Física, as ciências exatas, com alta objetividade e demanda reduzida.
A distinção importa porque, como os autores observam, indicadores agregados podem mascarar efeitos relevantes. Um sistema de cotas pode parecer bem-sucedido se analisado globalmente — mas fracassar dentro de um curso específico sem que ninguém perceba.
Nos dados da Unesp, a diferença entre áreas é o que mais fala.
Pedagogia – O efeito de teto
Em Pedagogia, o desempenho é tão alto que o sistema parece irrelevante. As taxas de graduação giram em torno de 70% e atingem o platô já no quinto ano — independentemente da origem do aluno. Se você olhar o artigo original vai ver que os gráficos mostram linhas quase sobrepostas entre SU, EP e PPI. Nenhuma diferença estatisticamente significativa, apenas pequenas oscilações.
Num ambiente onde quase todos se formam, o sistema de cotas não tem como mostrar impacto — nem positivo nem negativo.
Mas há uma ironia nisso. O mesmo dado que parece indicar igualdade pode, na prática, ocultar fragilidades. Num curso com alta aprovação, a avaliação deixa de ser um filtro de mérito. Em outras palavras: todos cruzam a linha de chegada, mas nem sempre nas mesmas condições.
Física – O efeito de chão
No extremo oposto está a Física. Aqui, a concorrência é baixa — em média, 1,6 candidato por vaga, segundo o levantamento de 2025. Em alguns campi, o número cai abaixo de 1, o que significa que há mais vagas do que interessados. O resultado é um paradoxo: a política de cotas se torna estatisticamente irrelevante.
O que domina, aqui, não é o sistema de acesso, mas a evasão.
Com baixa demanda, quase todos são aceitos; com alta dificuldade, quase todos desistem. O problema, portanto, não é de inclusão, mas de sobrevivência.
Biologia – O ponto de virada
É na Biologia que a política começa a mostrar seu desenho mais nítido. A concorrência é três vezes maior que em Física, cerca de 4,5 candidatos por vaga, e o curso mantém um equilíbrio entre teoria e prática que o torna um campo de observação ideal.
Os números falam com clareza. Após dez anos de dados, as taxas de graduação se estabilizam em torno de 60% para SU e EP e 45% para PPI. A diferença, de quinze pontos percentuais, é estatisticamente significativa.
O gráfico de Biologia — a Figura 2 do estudo original — mostra três curvas que sobem juntas nos primeiros anos, mas logo se distanciam. As de SU e EP formam um platô suave; a de PPI se acomoda abaixo, paralela, sem jamais alcançá-las.
Essa paralelidade é o que mais intriga. Se houvesse um “efeito de recuperação”, como sugerem algumas teorias pedagógicas, as linhas tenderiam a convergir com o tempo. Mas não convergem. O platô final é mais baixo, e permanece estável.
É uma conclusão seca e carregada de implicações.
Na Biologia, o sistema de cotas cumpre parcialmente o que promete: abre a porta, mas não garante que todos cheguem ao fim. É o ponto em que o ideal de justiça começa a encontrar os limites da preparação anterior.
O espelho do Cálculo I
Cálculo I está presente na maior parte dos cursos de Ciências Exatas, Biológicas e Engenharias da Unesp. Funciona como uma fronteira simbólica — o ponto em que o estudante percebe se pertence ou não ao território que escolheu.
Há razões para o temor quase mítico que o Cálculo inspira.
Ao contrário de disciplinas das humanidades, onde a avaliação pode diluir-se em interpretações e participação, o Cálculo opera em binário: ou a resposta está certa ou está errada. É uma linguagem que não admite improviso. Para resolvê-lo, o aluno precisa dominar com precisão conceitos de álgebra, geometria e lógica formal acumulados ao longo de toda a educação básica. Quem não construiu esses fundamentos chega ao curso como quem tenta erguer um edifício sobre areia. Por isso, o desempenho em Cálculo I costuma ser o melhor termômetro do preparo real — ele mede o que o aluno aprendeu antes da universidade, não apenas o que é capaz de aprender depois de entrar.
Foram verificados dados de 33 262 matrículas em Cálculo I, cobrindo o período de 2015 a 2024. O objetivo era simples e direto: verificar se, num conjunto tão amplo, as diferenças entre grupos de ingresso (SU, EP e PPI) ainda se mantinham.
Mantinham.
As curvas produzidas pelo estudo são nítidas. Os estudantes do Sistema Universal (SU) apresentam as maiores taxas de aprovação, os de Escola Pública (EP) ocupam o meio, e os PPI permanecem abaixo. Ano após ano, a hierarquia se repete, com variações pequenas demais para serem atribuídas ao acaso.
É como se o Cálculo I condensasse, em sua aridez matemática, a própria estrutura social que o sistema tenta corrigir. O desempenho acadêmico se organiza em camadas — não pela cor ou pela origem declarada, mas pela nota de corte que definiu o ponto de entrada.
Os que entraram com as maiores notas têm as maiores taxas de aprovação; os do meio, resultados medianos; e o tercil inferior, desempenho consistentemente pior. O que parece uma obviedade estatística se transforma, aqui, em um retrato sociológico.
E as surpresas continuam. Quando os autores analisaram o histórico dos estudantes que repetiram a disciplina, encontraram um resultado contraintuitivo: a probabilidade de aprovação diminui a cada nova tentativa. A intuição pedagógica sugeriria o oposto: quanto mais o aluno tenta, mais aprende. Mas os números contam outra história. As reprovações sucessivas parecem corroer a confiança, não construir resiliência.
O texto do pré-print foi escrito com cuidado para não extrapolar os dados, mas a implicação é clara: os estudantes que entram com menor preparo enfrentam uma espiral de reprovações que tende a reforçar a desigualdade inicial. O obstáculo não é apenas cognitivo — é psicológico, cumulativo, quase entrópico.



Boa análise.